ET - Com toda essa fama, com a Indulgência Plenária da Porciúncula concedida pelo papa, o bispo nunca veio conhecer a capela?
Mons. Valmir - Sim, veio. Em 13 de outubro de 1869, o terceiro bispo de Goiás, Dom Joaquim Gonçalves de Azevedo, visita a Capela do Santíssimo Sacramento Apresentado Pelo Patrocínio de Maria. É o primeiro bispo a visitar o lugar. Depois vem Dom Eduardo em 1891 e encontra a capela descuidada e faz um relatório sobre isso, chamando a atenção dos moradores e do pároco, Vigário Paixão. Daí surge a ideia de se demolir a Capela e construir uma nova igreja, coisa que se concretizou em 1920.
ET - Se era “de paredes fortes, portas e janelas seguras”, como consta da documentação, por que a destruíram, não é mesmo? Poderíamos ter um rico patrimônio histórico...
Mons. Valmir - Sem dúvida. Mas, infelizmente desmancharam a capela para começar a construção da atual Igreja Matriz, sem as duas torres ainda, e mais ou menos até na metade. Há registros de que houve dotações da Câmara para poder ornamentar a Igreja. E o pároco fez questão de chamar Dom Eduardo para inaugurar a nova igreja, como que dizendo: “Olha como está agora!”.
ET – E o orago, mudou com essa inauguração?
Mons. Valmir - O que a gente encontra nos documentos é que o orago é o Santíssimo Sacramento e os padroeiros, o Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora do Patrocínio, sempre nesta ordem, o Santíssimo Sacramento, primeiro. Agora, o que vou dizer é uma suposição, imagino que num determinado momento, alguém inverteu a ordem dos padroeiros e escreveu, ou teria dito: “Nossa Senhora do Patrocínio e o Santíssimo Sacramento”. E essa nova nomenclatura começou a ser repetida. Na crônica escrita por Cgo. César, ele escreve no cabeçalho o título entre parênteses, “Nossa Senhora do Patrocínio do Santíssimo Sacramento” e, em seguida vem o texto: “Em Sacramento, há uma capela dedicada ao Santíssimo Sacramento e os padroeiros são o Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora do Patrocínio...”. Penso que ele não parou para conferir, analisar o que estava escrevendo, a partir da informação do Cônego Julião Nunes.
ET - O Sr. quer dizer que o cronista errou no título, mas informou o orago certo no texto escrito, e a partir daí o que prevaleceu foi o título?
Mons. Valmir - É uma suposição. Porque ele escreve um nome em cima e escreve a história certinha embaixo... Acredito que, quando em 1920, convidaram Dom Eduardo pra vir inaugurar a igreja, ele deve ter perguntado ao seu secretário: “Como é o nome da frequezia?” Ou até mesmo o próprio Dom Eduardo fez uma pesquisa nas crônicas e viu lá o título dado por Cgo. César, “Nossa Senhora do Patrocínio do Santíssimo Sacramento”, claro, sem ler a história. E nos registros constam que ele veio aqui abençoar a Igreja que ele chamou de Nossa Senhora do Patrocínio do Santíssimo Sacramento.
ET - E ninguém reagiu?
Mons. Valmir - Sim, em 1937, Cônego Julião Nunes, respondendo certamente a pedidos de informação por parte da cúria da nova diocese, escreve reafirmando o orago e os padroeiros. Reafirma o cônego, inclusive, que em 1848, o Papa concedeu à Capela Curada do Santíssimo Sacramento a Indulgência Plenária da Porciúncula. Monsenhor Fleury, o vigário que o sucedeu, também escreveu, em 1947: “A paróquia é do Santíssimo Sacramento”. E tem mais, nas leis da Câmara, no ato de compra dos terrenos que não estavam aforados, está escrito: “Compra-os da fábrica da Matriz do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora do Patrocínio”. Mas o nome permaneceu.
ET - Foi quando surgiu também uma nova denominação para Nossa Senhora...
Mons. Valmir – Este é o lado bonito da história. Esse equívoco gerou um dos títulos mais bonitos de Nossa Senhora. Se eles tivessem lido o texto e feito a correção, nós não teríamos Nossa Senhora do Patrocínio do Santíssimo Sacramento, hoje. Para mim, isso não é coincidência, é carinho de Deus.
ET - Já que estamos resgatando fatos e verdades históricas, o correto não seria dizer, também, cidade 'do' Sacramento?
Mons. Valmir - Nos registros históricos que pesquisei, o nome foi sempre regido pelo artigo definido 'o'. Em 24 de agosto de 1820, o cônego funda o Arraial 'do'Santíssimo Sacramento, que foi elevado a Vila 'do' Santíssimo Sacramento, em 1870; depois, à cidade 'do' Santíssimo Sacramento, até 1911. E, finalmente, a alteração para cidade 'do' Sacramento. Assim é a Lei, “cidade do Sacramento”. Penso que talvez por uma acomodação da língua, passaram a dizer cidade 'de' Sacramento, em vez de, 'do' Sacramento, como temos por exemplo, a cidade do Rio de Janeiro, a cidade do Porto, onde o porto está, em Portugal. Assim, “cidade do Sacramento” é onde o Santíssimo Sacramento está, a Eucaristia está. Vejo tudo isso como indicação da identidade desse lugar, dessa terra, dos nascidos aqui, a vocação do lugar.
ET - E como toda essa pesquisa chegou a Dom Paulo Mendes, o novo arcebispo?
Mons. Valmir - Essa questão permaneceu pendente anos e anos, apesar dos escritos dos padres da época, mas a Cúria nunca afirmava nem uma coisa nem outra. Foi então que, após longa pesquisa, apresentei tudo isso ao arcebispo Dom Paulo, pedindo-lhe que olhasse com carinho a questão. Antes, porém apresentei todos os documentos ao presidente do Tribunal Eclesiástico, Dom Hugo da Silva Cavalcante, porque eu não queria de modo algum induzir alguém e muito menos mostrar que era uma vontade minha. De repente, isso poderia ser um erro, que só eu pudesse ver. Mas, Dom Hugo ficou encantado com a história e os documentos.
ET - E Dom Paulo?
Mons. Valmir - Veja como Deus faz as coisas: quando Dom Paulo foi para São José do Rio Preto, encontrou lá uma situação semelhante, porque a diocese de lá foi criada sob o patrocínio da Imaculada Conceição, mas por causa de a cidade ter o nome de São José do Rio Preto, São José virou patrono. Então, dom Paulo já havia feito um processo semelhante lá. Quando eu falei com ele, logo ele me disse: “Eu vivi essa situação em São José... E nós temos que realmente retomar a história”. Não podem ser coincidências essas coisas...
ET - E veio, então, o Decreto Episcopal nº 2, corrigindo um erro histórico e convalidando outros fatos?
Mons. Valmir - Dom Paulo, um dia, me chamou e conversamos sobre a possibilidade de resolver as três pendências: a primeira, reconhecendo e convalidando o orago; a segunda, reconhecendo e convalidando, nos mesmos termos, a lei que a Câmara aprovou e o então prefeito José Alberto sancionou, ou seja, a Igreja proclamando, com esse título inédito, Nossa Senhora do Patrocínio do Santíssimo Sacramento como padroeira da cidade; e, a terceira pendência, reconhecer e convalidar São Sebastião, Divino Espírito Santo e São Miguel como patronos do município. Isso significa reconhecer e convalidar esse título que a tradição do povo de Sacramento deu a Nossa Senhora, em 1920, portanto há 92 anos, e torná-lo canônico. Vale lembrar a unicidade universal deste título!
ET – Quando?
Mons. Valmir - Ainda este ano estaremos realizando uma celebração, já agendada para o dia 21 de dezembro, com a presença de Dom Paulo, para oficializar o resgate do antigo orago, para 'Paróquia do Santíssimo Sacramento Apresentado pelo Patrocínio de Maria' e todo esse reconhecimento a Nossa Senhora do Patrocínio do Santíssimo Sacramento, como padroeira do município, sem nenhuma mudança de seu título, e o reconhecimento dos patronos do município, São Sebastião, Divino Espírito Santo e São Miguel, resolvendo assim de uma vez essas três questões, há muitos anos pendentes.
ET – Como uma indulgência não se extingue e como se trata de um privilégio muito grande para uma Igreja e para a cidade recebê-la, não caberia à própria igreja reacender essa fé no povo, a fim de reavivá-la a cada dia 2 de agosto?
Mons. Valmir - Uma Indulgência não se extingue, a não ser que haja uma razão muito forte, o que não é o caso de Sacramento. Na minha opinião, a indulgência aqui, não sei por quê, caiu em desuso, foi esquecida e acabou sendo deixada de lado, o que é uma pena, porque uma indulgência representa um privilégio para uma cidade ou para a igreja que a recebeu. Claro que seria interessante reavivá-la. Estava concluindo essa pesquisa e iria iniciar esse trabalho, assim como reavivar o pedido feito por Dom José Pedro Costa, a Roma, atendendo a um pedido da cidade, para transformar a Igreja Matriz original de Sacramento em Basílica do Santíssimo Sacramento.
ET - Como o fiel pode obter a Indulgência Plenária da Porciúncula e quais os seus benefícios apostólicos?
Mons. Valmir - Obtém-se indulgências, no dia 2 de agosto de cada ano, cumprindo aquilo que a penitenciaria apostólica prevê: a confissão sacramental, participação na eucaristia e orações na intenção do Santo Padre. A pessoa alcança de Deus a aplicação dos méritos de toda igreja, em favor, por exemplo, dos falecidos da família, de pessoas doentes e necessitadas. O grande tesouro da igreja são os merecimentos, portanto, o bem feito pelo conjunto dos cristãos. E a Igreja aplica isso ou na salvação das almas ou na ajuda até física para as pessoas. E o interessante é que, normalmente, as indulgências não se aplicam à própria pessoa, nas em favor dos outros. Este é um tesouro espiritual que, infelizmente, acabou ficando esquecido em Sacramento e que precisa ser resgatado. Isso precisa ser trabalhado, não pode ficar esquecido.
ET - E com relação à Basílica do Santíssimo Sacramento, essa discussão continua aberta, há essa possibilidade?
Mons. Valmir - Há alguns anos, nos idos de 1970, houve por parte de algumas pessoas de Sacramento, um pedido ao bispo da época, Dom José Pedro Costa, para que se elevasse a nossa matriz central à condição de Basílica do Santíssimo Sacramento. Esse pedido foi acolhido pelo bispo, que encaminhou a documentação para a Santa Sé. O Vaticano respondeu indicando quais eram as condições. Se Roma respondeu dizendo quais as condições, é indício de que era possível fazer isso, do contrário, não responderiam ou simplesmente diriam, não. Dom José Pedro, pelo jeito que as coisas aconteceram, se entusiasmou com a história. Depois, não sei o que se passou por aqui que essa ideia foi abandonada. Agora, veja como as coisas têm ligação: um pedido foi feito para ser criada a Basílica do Santíssimo Sacramento, isso mostra que aqui, tudo foi ao redor do Santíssimo Sacramento.
ET – Prá terminar, Monsenhor, a perguntinha que não quer calar: Há possibilidade do retorno do sacrário para o centro do altar, obedecendo a uma perfeita sintonia com o retorno do orago original?
Mons. Valmir - A volta do sacrário para o altar central é uma possibilidade que pode vir a ser concretizada. Eu entendo que isso exige um processo, no qual os passos terão que ser seguidos. O primeiro foi este, o reconhecimento do orago, e aí se abrem inúmeras possibilidades.
ET – Agradecemos a entrevista e, sabendo de sua saída de Sacramento, podemos afirmar que o Sr., além de 'distribuir os inefáveis sacramentos da Igreja' aos seus paroquianos, durante quatro anos, também foi o grande responsável pela promulgação do Decreto nº 2, devolvendo à paróquia o seu orago original.
Mons. Valmir – Foi a melhor maneira de agradecer a todos vocês. Todos sabem que estou para deixar Sacramento. Sou profundamente agradecido a Deus por esta oportunidade de ter estado aqui por quatro anos e igualmente agradecido a todos pelo acolhimento, solidariedade e participação em tudo que foi proposto, ao longo destes anos. Há somente gratidão no meu coração. Poder levar a termo esta questão, que resultou neste Decreto Episcopal, entendo ser a melhor maneira pela qual eu poderia dizer obrigado a esta terra que tão bem me acolheu e que me fez, também, seu filho. Obrigado, Sacramento!
Veja a parte 1 da entrevista, aqui: http://etnews.com.br/noticias/entrevistas/2012/decreto-episcopal-resgata-nome-da-igreja-mae-de-sacramento