Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Um beijo roubado

Edição n° 1193 - 19 Fevereiro 2010

A bucólica Praça do Uberaba Tênis, no final dos anos 1920, foi o cenário que envolveu o começo de uma história que chega a 2010.

Em março de 1920, no dia 20, nascia uma formosa criança, Helia, na residência do casal Benevenuto e Sinhazinha. Lar governado com o rigor de uma época quando as mulheres tinham por destino as lides da casa. Na adolescência se iniciava o aprendizado do corte e costura e, licença maior, se formava professora e, assim, trabalhava fora.

Esse foi o roteiro seguido pela garota Helia, até que Uberaba recebesse a sua primeira Companhia Telefônica e, num avanço tecnológico sem precedente, em 1939, a primeira turma de telefonistas pôs para funcionar o sistema interurbano de comunicação. Helia fez parte da primeira turma de telefonistas de Uberaba, algo que, guardadas as proporções, equivaleria, hoje, à operação de um sofisticado sistema de informática e comunicação. Avanço que marcou a época.

Sacramento, na mesma década, implantou sua Cia Telefônica. Um dos mais assíduos freqüentadores era o jovem Alberto, sonhador que se acreditava um dia rico com a intermediação de negócios com o café e que se comunicava diariamente com o Porto de Santos. Uma das telefonistas em Sacramento era a sua prima, Maura.

No meio daquela década, a telefonista Maura foi o cupido que, por telefone, apresentou Helia ao Alberto. Semanas de contato telefônico até que foi marcado o primeiro encontro, em Uberaba. Quando o Alberto chegasse, Helia o aguardaria na janela da casa. Nunca haviam se visto.

Ficou combinado: a certa altura, o Alberto deveria convidar Helia para ir à matinê (à sessão noturna, nem pensar. Primeiro encontro, só com muita gente por perto). Se ela tivesse ficado bem impressionada com o namorado, até então “virtual”, aceitaria o convite. Era a senha para a continuidade do namoro que mal começara.

O enredo se desenrolou conforme o combinado.

Quando Alberto viu Helia pela primeira vez, o coração disparou e a timidez deu lugar à “ousadia” para disparar: “Você é muito mais bonita do que eu pudesse imaginar”. Rubores à parte, Helia convida Alberto para entrar e, conversa vai, conversa vem, o roteiro continuou com o convite para a matinê. Mandava o script que deveria haver uma leve dificuldade e a resposta veio que somente iria se a sobrinha a pudesse acompanhar. Tudo já combinado se a impressão fosse boa.

Namoro à distância, telefonemas sempre que possível, recatadas visitas às famílias. Noivado.  Poucos meses para o casamento, Alberto e Helia em Sacramento, noivando na sala quando, ousadia impensável para um Congregado Mariano e Irmão do Santíssimo, um beijo roubado. No rosto. Pior: debaixo de um quadro do Sagrado Coração. 

Daquele matinê numa tarde de um dia de março de 1947, do recatado namoro nos anos que se seguiram, Alberto e Helia formaram uma família de oito filhos, numa Sacramento que não sabia receber gente de fora.  

De uma Uberaba que se afirmava cosmopolita para uma Sacramento que tinhas poucas ruas calçadas, foi uma mudança forte. Das dificuldades de adaptação, uma delas conta de uma procissão, quando, de tempos em tempos, se ajoelhava. A cada vez que se fazia a genuflexão, risos eram sufocados por moçoilas sacramentanas. Tudo porque no salto do sapato havia se fixado algum excremento, que não eram raros pelas ruas da cidade. Se no ambiente de fé e devoção que se esperava de uma procissão, ao invés de solidariedade se encontrava pilhéria, pouco restava para se buscar na convivência social. 

Mas se as provincianas moças de Sacramento não sabiam ser acolhedoras, não se podia dizer o mesmo de outras pessoas como Dª Quituca, vizinha que nunca negou ajuda. E desse anjo da guarda é que ficou uma das mais divertidas lembranças: a inexperiente mamãe, ao colocar um supositório no bebê que há poucos meses chegara, ficava segurando-o – imagina a dificuldade – até que acabasse. Certo dia, quando menos se esperava, o supositório foi “engolido”. Restou, desesperadamente, buscar o socorro da Dª. Quituca. Aos prantos, narrado o que tinha acontecido, Dª Quituca pediu desculpas para soltar a mais estrondosa e merecida risada e explicar o mecanismo de aplicação daquele medicamento. Lembranças que não se apagam. 

Neste 20 de março a encantadora Helia completa 90 anos. Lúcida, ainda querendo intervir no dia a dia da família, ainda apegada aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, mais a inefável veneração ao São Judas Tadeu, ainda sonhadora. 

Do beijo roubado a uma família numerosa há uma história de dedicação, de abdicação, de esforço sobre-humano, de busca incessante do bem, da formação de uma família de bem, do amor na expressão da palavra, de vontade própria, de afeto, de ternura, de carinho, de noites com a filharada ao redor e cantares que nunca se apagarão da memória, de casas confortáveis e de casas modestas, mas, sempre, de um lar acolhedor, de uma palavra de incentivo, de um apoio incondicional, de companheira sem igual para o Alberto que a escolheu, de uma fé inabalável.  

 

Do filho, Bertim