Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Entrevista Alessandro Abdala - O refúgio de Abdala

Edição nº 1602 - 22 de Dezembro de 2017

O professor de História, designer gráfico e fotógrafo de natureza, Alessandro Abdala (foto), depois de vasta contribuição em artigos e trabalhos publicados em conceituadas revistas, no Brasil e exterior, lança nesta sexta-feira 22, na Casa da Cultura Sérgio Pacheco, seu primeiro livro, 'Serra da Canastra, refúgio das aves do cerrado'. Antecipando ao lançamento e à noite de autógrafos, o ET conversou com Abdala abordando o tema. 

Veja a entrevista.

 

ET - Como você gestou, 'Serra da Canastra, refúgio das aves do cerrado'?

Alessandro - Este é um trabalho que sempre pensei em fazer. Há mais de uma década venho colhendo registros, armazenando informações, pesquisas históricas, sempre vislumbrando a possibilidade de reunir tudo em um livro que condensasse toda a riqueza e beleza da Serra da Canastra, especialmente com relação às aves. A partir de 2015 comecei a trabalhar com mais afinco, elaborei um esboço, defini os temas e passei a me dedicar especificamente ao projeto. Hoje temos o resultado, “SERRA DA CANASTRA: Refúgio das Aves do Cerrado” reúne a história, cultura, gente, paisagens, fauna e flora da Serra da Canastra em uma visão artística enriquecida pelas ilustrações de Denis Balduíno, que acrescentam um tom leve à obra. 

 

ET - Essas suas andanças pelo mato, o gosto pela natureza, sua profunda dedicação à fauna avícola, em especial, nasceram desde quando?

Alessandro - Isso é uma coisa de família, aprendi a gostar com meu pai, meus tios. Todos muito ligados à natureza. Desde criança eu, meu irmão e primos aventurávamos com meu pai pelos campos e cerrados naquela época ainda abundantes na região. Com meu pai aprendi a conhecer as aves, ele era muito criativo, inventava nomes para os bichos, criava histórias que nos fascinavam. Quando criança cheguei até a fazer um caderno, listando o nome de cada espécie que conhecia. Só muito mais tarde fui conhecer essa prática e saber que era comum na metodologia científica.

 

ET - O cerrado foi o ecossistema predominante em todo o Sertão da Farinha Podre... A partir dos anos 70, quando as primeiras reflorestadoras chegaram ao município e as lavouras começaram a ser plantadas no cerrado, começou sua degradação. Você saberia dizer o que resta desse ecossistema, ainda intacto no município?

Alessandro - O Cerrado ocupa cerca de 22% do território nacional. Entretanto, pouco resta da formação original, tendo sido a maior parte do bioma (cerca de 80%)  suprimida para a utilização agropecuária.  A região do Parque Nacional da Serra da Canastra guarda um dos maiores remanescentes de Cerrado, sendo a sexta maior porção do bioma no Brasil, conforme dados do Plano de Manejo da Unidade (documento elaborado por corpo científico responsável por estudo e conservação do ecossistema da Canastra). É, portanto, um santuário ainda intocado, um repositório autêntico de paisagens e seres vivos próprios do bioma. Estima-se que 20% das espécies nativas e endêmicas do Cerrado já não ocorram em áreas protegidas e que pelo menos 137 espécies de animais do bioma estejam ameaçadas de extinção. A ocupação humana exerce cada vez mais pressão sobre esse ambiente. Embora o risco e importância biológica sejam conhecidos, dentre os biomas brasileiros o Cerrado é o que possui a menor porcentagem de áreas sob proteção integral. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, apenas 8,21% de seu território estão legalmente protegidos por unidades de conservação. O que torna a preservação de áreas como a da Serra da Canastra uma necessidade urgente e que deveria ser objeto de atenção de cada brasileiro. Em Sacramento não temos um estudo consistente, mas considerando nossas observações meramente visuais,  praticamente não temos mais áreas intactas de cerrado, salvo aquelas protegidas pelo Parque Nacional.

 

ET - Aqui está, então, a causa principal e razão denunciante do título de seu livro... Não fosse a Serra da Canastra, onde nossa fauna avícola busca refúgio, algumas espécies já teriam desaparecido e outras ameaçadas?

Alessandro - Com toda certeza. Tomemos como exemplo o pato-mergulhão (Mergus octosetaceus), uma das aves mais ameaçadas do mundo, com uma população atual de apenas duas centenas de indivíduos. Para sobreviver, essa espécie precisa de água limpa, corrente e cristalina, com abundância de lambaris (seu principal alimento) e mata ciliar preservada. Essa espécie tinha, originalmente, uma ampla distribuição no Brasil e outros países da América do sul e  atualmente só encontra refúgio em áreas protegidas, como o Parque Nacional da Serra da Canastra, ou seja, não fosse o Parque Nacional, essa seria uma espécie já extinta. Mas além do pato mergulhão, temos pelo menos mais uma dezena de espécies que estão listadas como em perigo de extinção, principalmente aquelas associadas aos campos naturais, uma das fitofisionomias do bioma Cerrado. Infelizmente existe um conceito errôneo, de que o campo, ambiente onde predominam gramíneas e árvores esparsas de porte baixo, seria um ecossistema pobre, com baixa ocorrência de espécies vegetais e animais. 

 

ET - E não é?

Alessandro - Não, na verdade, ocorre exatamente o contrário, o campo natural constitui um ambiente riquíssimo, do qual dependem grande diversidade de plantas e animais. Entre as aves, joias como o galito, andarilho, papa-moscas-do-campo e tico-tico-de-máscara negra dependem exclusivamente das áreas de campo natural para sobreviver. Com o advento da agricultura mecanizada e a prática de se substituir as pastagens de campo nativo por capins exóticos, como a braquiária, essas espécies fatalmente desaparecem, como infelizmente tem acontecido nas áreas de entorno do Parque em Sacramento. Daí a grande importância do Parque Nacional.

 

ET - Poderia resumir o conteúdo de sua obra, citando por exemplo a quantidade de aves fotografadas. Qual a ave mais rara registrada no livro?

Alessandro - O livro é dividido em duas partes. A primeira traça um perfil histórico e cultural da região em que se insere o Parque Nacional da Serra da Canastra e fornece algumas informações a respeito da origem e entendimento do bioma Cerrado. A segunda é dedicada a apresentar em imagens a exuberância da região do cerrado mineiro, com especial atenção ao estudo e apresentação  das aves. Não deixamos, contudo, de representar plantas, paisagens e outros animais que compõem a rica biodiversidade da Serra da Canastra, principalmente em sua porção oeste, no município de Sacramento, ainda pouco conhecida e divulgada. Todas as imagens do livro foram tomadas em ambiente natural e representam espécies que vivem nos limites e cercanias do Parque Nacional da Serra da Canastra.

 

ET - Qual a ave mais rara registrada no livro? Qual o melhor flagrante feito e a técnica utilizada para fotografar pássaros?

Alessandro - O livro retrata mais de 100 espécies de aves. Dentre as mais raras, com certeza está o pato-mergulhão, umas das espécies mais raras do mundo. Mas a obra mostra muitas outras aves ameaçadas, algumas praticamente só encontradas atualmente na região da Canastra, como o galito (Alectrurus tricolor) e o andarilho (Geositta poeciloptera). A obra traz ainda, registros de espécies pouco documentadas, como o maxalalagá (Micropygia Schomburgkii), um tipo de saracura de áreas campestres com raríssimos registros publicados em todo o mundo.

 

ET - Os melhores flagrantes...

Alessandro - Sobre melhores flagrantes, são vários. Alguns me conferiram prêmios nacionais como o fura-barreira (Clibanornis rectirostris) e o galito (Alectrurus tricolor). Outros, como a foto de um urubu-rei (Sarcoramphus papa) sob a chuva,  esteve como finalista em um dos maiores concursos de fotografia de natureza do mundo (Wildlife Photografer Of the Year, do Museu de História Natural Britânico) e acabou publicada, em destaque, no Handbook of Birds of de World. Poderia citar ainda, o flagrante de um casal de beija-flor-de-bico-curvo (Polytmus guainumbi), captado no momento em que o macho exibia sua dança nupcial para a fêmea. Essa foto foi recentemente publicada no belíssimo livro, “Beija-flores do Brasil”, do amigo Luiz Ribenboim.

 

ET - A sua natureza contestadora, de alguém que milita e convive com a natureza quase que  a cada fim de semana, está presente na sua obra, como forma, por exemplo de denúncia sobre o que vem acontecendo em termos de degradação ambiental, alguma coisa?

Alessandro - Sim, existe um capítulo no livro que trata exatamente disso. Pois mesmo com todo o valor que o Parque Nacional da Serra da Canastra representa, ele não está livre de ameaças. Agricultura mecanizada Intensiva, queimadas criminosas que acontecem anualmente,  propostas políticas que pretendem esfacelar sua área de proteção, são algumas das ameaças discutidas no livro. Esperamos que esta obra valha como instrumento de conscientização sobre a importância dessa unidade de conservação federal e sirva como ferramenta na luta pela preservação da biodiversidade brasileira.


ET -  Com sua licença, lembrando aqui meus tempos de professor de Língua e Literatura, uma das atividades na construção de textos com os alunos era refletir os temas da Campanha da Fraternidade, sempre muito candentes, e vários deles abordando a terra, a água, o ecossistema, enfim, o planeta, até que chegamos a essa expressão belíssima do Papa Francisco, 'o cuidado com a Casa Comum', na CF de 2016... Embora seja um projeto da CNBB, as igrejas locais trabalham de maneira muito tímida os temas apresentados... Não há uma adesão pra valer!! E fora dela, a gente não vê absolutamente nada. Por parte, então, do governo, é uma lástima. Como despertar na população esse Cuidado com a Casa Comum, que está indo pro brejo?  

Alessandro - A gente só valoriza e preserva aquilo que conhece. E infelizmente as riquezas naturais do Brasil não são conhecidas do grande público. Sacramento, por exemplo, tem parte do Parque Nacional da Serra da Canastra em seu município, temos uma portaria que dá acesso ao Parque, mas quantos sacramentanos realmente conhecem a Serra da Canastra, sua cultura e biodiversidade? Acho que o caminho é tornar esses valores conhecidos. Junto com o lançamento do livro acontecerá a abertura da exposição itinerante, um conjunto de 15 painéis, totalizando 30 imagens que buscam retratar a diversidade natural e cultural da Serra da Canastra. Essa exposição deverá percorrer as cidades da região levando a Serra da Canastra para museus, escolas e outros espaços públicos e privados. Esperamos assim contribuir para que a Canastra se torne um pouco mais conhecida e consequentemente, mais valorizada.