Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Carolina por José Carlos Sebe

Edição nº 1488 - 23 de Outubro de 2015

O Professor José Carlos Sebe Bom Meihy esteve em Sacramento no último final de semana, 16 e 17,  para prestigiar o relançamento do livro 'Cinderela Negra: a saga de Carolina Maria de Jesus', de sua autoria,  com o escritor americano Robert M Levine (1941/2003), lançado em 1996 e que marca, segundo o professor, a segunda etapa caroliniana. 

José Sebe, como é conhecido, é graduado  História pela Universidade de Taubaté e Doutor  em História Social pela Universidade de São Paulo (1975), onde se tornou Professor titular do Departamento de História da Universidade, até se aposentar. Atualmente é coordenador do NEHO (Núcleo de História Oral da USP) e membro do corpo editorial de várias revistas.

Ao longo de sua trajetória foi orientador de centenas de dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado, mais de  200 participações em  congressos, exposições, feiras  e palestras,  mais de 60 participações em comissões julgadoras de Mestrado e Doutorado. 

José Sebe é autor de 27 produções técnicas, inclusive internacionais, tem 11 publicações de obras em Congressos, mais de 100 artigos ou capítulos de livros publicados em revistas e jornais e 36 livros publicados, dentre eles  Antologia Pessoal de Carolina Maria de Jesus; Meu Estranho Diário - Carolina Maria de Jesus; The Life And Death Of Carolina Maria de Jesus; Cinderela Negra: A Saga de Carolina Maria de Jesus, com coautoria de Robert. M Levine, Robert M. Levine.  Gentilmente, recebeu o ET para a seguinte entrevista:

 

ET - Então, hoje o Sr. está conhecendo a terra onde sua personagem nasceu... Quando ouviu falar de Carolina?

José Sebe - É a primeira vez que venho Sacramento, mas já a conhecia, estudando Carolina. Afinal foi aqui que tudo começou,  aqui é o seu  ´ninho'. Eu tinha 17 anos quando li o Quarto de Despejo (1960), na hora que foi lançado e, para um rapaz de 17 anos, a obra era uma revelação completa, a bomba atômica para a imaginação, naqueles anos 60, e acabei muito envolvido com aquela pobreza, aquela miséria toda e uma mulher denunciar aquilo tudo. Mas, o livro teve um efeito imediato e, como para grande parte dos brasileiros, caiu meio que no esquecimento, digamos, ficou adormecido. Até porque, logo de imediato, foi lançado Casa de Alvenaria que não teve o mesmo sucesso. 

ET - E logo veio o Golpe Militar...

JS - Esse foi o golpe fatal, podou de vez a obra dela e de outros também.  Mas o curioso é que Carolina continuou em voga no exterior. Eu, que sou de origem árabe, tenho muitas relações com o exterior e lá eles a cultivavam, isto é, fora do Brasil, ela nunca teve crise. E dentre os apaixonados pela obra de  Carolina, um era o Robert Levine. Trocávamos cartas e ele sempre me instigava, até que resultou nesse livro, Cinderela Negra, relançado hoje. E, a partir desse livro, meu nome ficou ligado a Carolina. Robert e eu tínhamos uma prática de trabalho comum. Eu sou filho de árabes e ele, de judeus, então, fazíamos questão de trabalhar juntos, dentro de um programa de convivência de diferentes culturas, sobretudo culturas em guerras e temos vários trabalhos juntos. Mas o que considero mais importante, no caso do Brasil, é esse da Carolina.

ET - Vários autores e as artes de modo geral foram abafadas, censuradas pelo governo militar. Poderíamos dizer que Carolina, pela sua condição de favelada, negra, tenha sido a que mais sofreu repressão?

JS - Eu não diria que foi a que mais sofreu repressão, mas, sem dúvida, ela incomodou muito, porque o que se combatia muito era aquele modelo de mulher pobre, que vivia na miséria. E Carolina representava um  conjunto de situações: era mulher, era migrante, era negra, mãe solteira, pobre  e tudo isso fez com que ela entrasse num cenário  não desejado, visto que o objetivo  era mostrar um brasileiro arrumadinho, o brasileiro da cidade, letrado, disposto a trabalhar... E Carolina não servia a esse modelo, além disso ela tinha toda uma crítica a esse modelo,  então ela não servia para representá-lo. Mas isso ocorreu só no Brasil, porque lá fora era sempre foi muito respeitada. De brasileiros lidos fora do Brasil, ela é a autora mais lida, só perde para Paulo Coelho e, foi mais traduzida que Jorge Amado. Todos os departamentos de estudos sobre a América Latina relacionados a problemas de negritude, mulher, migração, mães solteiras, pobreza... Enfim, todos esses estudos fora do Brasil arrolam Carolina como referência, isto é, ela é referência nesses estudos.

ET - Carolina ficou muitos anos 'esquecida' e, de repente a Carolina foi redescoberta no Brasil... Por que esses altos e baixos de Carolina?

JS - Curiosamente, Carolina teve, sim, momentos altos e baixos no Brasil. Não se falava em Carolina neste país. Carolina, na verdade, tem três momentos no Brasil e, agora,  espero, seja para sempre. O primeiro foi o momento de estreia, em 1960, quando do lançamento de Quarto de Despejo, que foi o primeiro grande best seller brasileiro. Ela inaugura isso e há toda uma movimentação em torno dela: afinal como é que alguém semi-analfabeta,  negra e é escritora? No ano seguinte, com o lançamento de 'Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada' e já não teve sucesso.  O segundo momento vem nos anos 1990, depois da abertura política, quando cria-se todo um ambiente de reaparecimento dos movimentos negros, o feminismo ganha destaque e, nesse cenário, Carolina ressurge. E em 1994, Levine e eu fizemos Cinderela Negra, que foi lançado em 1996. 

ET - O Sr. leu Quarto de Despejo aos 17 anos e pelo que se vê o 'apagão´ de Carolina quando ocorreu o atingiu também. Ou não? 

JS - Carolina ficou na minha memória, mas não com aquela força inicial, porque na verdade, havia algo que me entusiasmava, me chamava a atenção: a força que Carolina tinha fora do Brasil. Se um historiador eminente como era Levine, que publicou  um estudo sobre um período decisivo do primeiro governo de Getúlio Vargas - The Vargas regime: The critical years, 1934-1938 (Pai dos Pobres: o Brasil e a Era Vargas) - resultado de três décadas de pesquisa, com fontes extraídas dos arquivos de Washington e do Rio de Janeiro até a música popular brasileira, e depoimentos da gente do povo, tanto em forma de entrevistas como de cartas endereçadas a Getúlio...  Ora, um historiador desse gabarito se interessar por Carolina, havia um quê!

ET – Foi a partir dessa obra sobre Getúlio que nasceu a ideia do livro?

JS - Na verdade tudo começou, quando ele escreveu um artigo sobre Carolina e eu contestei. Desci o pau no artigo, afirmando que ele estava errado, que não era nada daquilo que ele escrevia, que Carolina não tinha aquela força.  Ele interpretava o momento da Carolina como se não tivesse havido, depois, um refluxo na aceitação dele. A partir de então nós começamos um debate por cartas. Trocamos umas 30 cartas, até que ele me sugeriu que relesse o Quarto de Despejo e fosse atrás das pessoas que estavam no Quarto de Despejo, para ver o que havia acontecido com elas.  Aceitei o desafio...

ET - O jornalista Audálio Dantas, que descobriu os cadernos; Maria Puertas; a assistente social, Da. Godinho, Vera Eunice, sua filha, e os irmãos...

JS - Sim, todos... Peguei alguns alunos e entrevistamos todos. E descobrimos que havia uma história da história do livro de  Carolina. Foi um grande choque para mim, ver que tudo tinha piorado. Não era mais a favela de Carolina, onde até então os barracos tinham telhas.   Pudemos ver que era possível sonhar dentro da favela e Carolina mais que ninguém fez isto.  E, a partir dessa pesquisa, nasceu 'Cinderela Negra, a saga de Carolina Maria de Jesus', que foi um sucesso muito grande, foi um momento em que se voltou a estudar Carolina. O livro é interessante, porque é um diálogo entre dois intelectuais. Ele tem a visão brasileira e a americana, a de um árabe e de um judeu. O livro foi traduzido para o inglês e até hoje vende muito, nos Estados Unidos até hoje. Ele ganhou voga no Brasil imediatamente, entrou para os departamentos de Letras, Filosofia, Sociologia, quer dizer não teve a dimensão social que passou a ter nesse terceiro momento, que é a celebração do seu centenário. 

ET – Então, o terceiro momento seria a comemoração do Centenário de nascimento de Carolina Maria de Jesus? 

JS - Sim, Carolina ganhou imenso destaque no seu centenário. Tornou-se de fato conhecida e espero que se perpetue. Os movimentos negros, os grupos feministas, as universidades, o país todo adotou, isto é, assumiu Carolina e lhe deu a devida importância. Diferentes lugares estouraram Carolina como um fenômeno, que não pôde passar despercebido. Há um esforço conjunto em promover a retomada de Carolina e ela chegou com força, que espero seja eterna, até porque ela abre campo  para  pensarmos, por exemplo, sobre o papel da censura no Brasil, e já há substância  crítica que sustente