Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Tody, uma história de vida e de trabalho

Edição nº 1204 - 07 Maio 2010

Custódio Antônio de Assis Santos, 62, o Tody,  o mais antigo impressor gráfico de Sacramento, o meia-esquerda do CAS, nos bons e velhos tempos do Atlético que quase chega à 1ª divisão mineira... Agora entrou definitivamente no rol dos aposentados. “Chega!” – disse ele ao ET. Foram quase 50 anos atrás de uma Bremensis alemã, depois uma Catu até chegar à automática Grafo Press, uma impressora da 'Czechoslovakia'. Ali, de pé, compondo tipos, chapeando, imprimindo, colocando e tirando papéis desde a velha Bremensis. Aliás, a aposentadoria chegou bem antes, há 18 ano. Mas como viver aposentado neste país se ano a ano o governo sempre corroeu o salário do aposentado? Paga-se sobre dez salários, sobre cinco e depois de certo tempo, recebe-se três, dois... Como sempre acontece com a maioria dos aposentados, Tody continuou trabalhando...  Mas agora, chega mesmo! Aos 62 anos, Tody “dependura as chuteiras”. Não no sentido literal da expressão, pois ainda mostra o seu talento junto aos veteranos da Praça de Esportes. Vamos à entrevista.

 

ET – Como sempre iniciamos, quem é oTody?

Tody – Sou filho de José Adão dos Santos e Maria Antônia Vieira. Nasci e cresci aqui mesmo, ao lado de dez irmãos. Papai e mamãe eram viúvos, papai tinha três filhos e mamãe três, do 1º casamento. Eles se casaram e nasceram mais quatro filhos, Francisco, Benedita, Cida e eu. Éramos uma família grande, mas dos filhos, só restamos os quatro últimos. Sou casado há 29 anos com a Profa. Célia Guarato e temos dois filhos, Caíce, engenheiro mecânico, e Candice, ainda universitária.

 

ET - Tody, então você cresceu aqui neste pedaço da Comendador Machado tendo o bairro de Lourdes como o espaço de sua infância... Sempre viveu aqui?

Tody – Sim, nasci ali na casa da esquina, na rua Comendador Machado com a Cel. José Afonso, onde mora a Cida, depois de casado me mudei aqui pra casa de baixo. Então, até hoje minha vida foi toda aqui. Na infância, isso aqui era tudo de terra, um poeirão. E nossa brincadeira preferida era no bairro de Lourdes. Brincar nas mangueiras, correr no pasto e brincar no campinho...

 

ET – do Hercinho... É verdade, que vocês tinham lá o melhor time de futebol da cidade?

Tody - O Hercinho, é filho do Augusto Lima. Naquele tempo não era qualquer menino que tinha bola. Eu mesmo não tinha. E quem tinha a bola era o dono do campo.  Quem tinha  bola era rei. Era menino demais, e cada dono da bola fazia o seu campinho e tinha o seu time. Ali no bairro de Lourdes havia vários campinhos, uns cinco e eu era do time do Hercinho. No nosso time tinha o Luiz Carlos, o Batata, o Roberto Gonzaga, Adailton, Nenzinho, jogávamos  todos no campinho do Hercinho... Sobre o melhor time, não sei, eles diziam... (risos)

 

ET - E  os estudos?

Tody - Estudei no Grupão (E.E. Dr. Afonso Pena Junior) e na Escola Normal (Escola Coronel). Formei em Contabilidade, ali mesmo no Coronel, quando ainda era a Escola Normal, da Da. Aracy. Éramos uma turma grande. O Walmor foi meu colega de escola desde a primeira série, o Marcão da Camig, Alexandre Scalon, Marcos do Tota, das meninas havia a Maida do Tê, a Vera Bernardes, Shirley do Cincinato, a Heid Karashima, a Aninha Afonso... Era muita gente, tem que remexer a memória para lembrar de todos. Depois, no Ginásio conhecemos outros. O interessante é que fomos pra uma sala cheia de gente repetente, por isso bem mais velha... O Tomate, Tunga, Heitorzinho, Volmir, o João Bosco Caramori. Era um pessoal bem mais velhos, que fazia carreira ali na 1ª série ginasial (risos). Hoje é 5ª série. Eu não me esqueço que chegamos todos certinhos, santinhos e eles mandavam na sala. A gente era pequenininho perto deles... A gente passava apurado (uma boa gargalhada). 


ET - Mas aí logo que você entrou na quinta-série foi trabalhar?

Tody – Nós chegamos ali com 10, 11 anos... Quando eu comecei a trabalhar eu tinha 13 anos. Eu me lembro direitinho, completei 13 anos no dia 10 de fevereiro e entrei na gráfica, no dia 25 de fevereiro. Como eu estudava de manhã, só trabalhava após a escola.  A gráfica foi meu primeiro e único emprego. Tive uns biquinhos antes, como entregador de leite pro Dr. Fábio, o restante foi só na gráfica do Seu Lulu. A gráfica era aqui pertinho de casa. Eu estava no campinho e quando cheguei, mamãe falou: “Amanhã você começa a trabalhar na Gráfica do Lulu. Eu consegui a vaga do Nenzinho pra você”. O Nenzinho era o centro-avante de nosso time, ele mudou e deixou a gráfica. Eu entrei lá como aprendiz, sem nenhum salário. 

 

ET – Era um serviço que exigia muito treino?

Tody – Muito. Fiquei um ano aprendendo a mexer com os tipos, decorar as caixas, aprender onde estavam as letras, montar as linhas no componedor, mandar pras chapas, tirar as provas, e só depois imprimir. Era tudo feito de letra em letra. E a gente tinha que decorar, porque  não olhava a letra, que era muito pequenininha, a gente decorava o lugar das caixinhas. Uma letrinha numa caixinha errada era um erro de ortografia, e tinha que refazer. Fazia letra por letra, formava a linha, compunha o parágrafo e quando o componedor estava cheio, levava para a bolandeira e ia formando a chapa. Depois de pronta a chapa, aí ia para a impressora, naquele tempo ainda manual. 

 

ET – Se ainda fosse assim, prá compor um texto de uma lauda, que tempo você gastaria?

Tody – Hoje se fosse fazer uma folha A4 nesse sistema, só pra montar seriam mais de duas horas, com certeza. Era tão complicado que se fosse pra fazer jornal assim, a gente já sabia tudo, porque tinha que ler, reler, pra não cometer erros. Mas, felizmente não peguei essa época. Quando começamos a imprimir jornal na gráfica, já era offset. Nos tempo do Seu Lulu, do Prof. Homilton Wilson... eles compunham e imprimiam os vários jornais da época, assim, tipo por tipo, letrinha por letrinha... No tempo d'A Semana era assim, tudo feito letra por letra. 


ET – Quanto tempo ficou como aprendiz, sem ganhar nada?

Tody – No começo eu ganhava gorjetas, um ano e pouco depois  tinha aprendido um pouco e  passei a  ter salário, e quando completei 18 anos o Seu Lulu me registrou. Eu me aposenti aos 44 anos, porque os gráficos têm o benefício da aposentadoria especial, não sei se ainda é assim, por causa da tinta, a fuligem dos tipos. Foi sempre um serviço  muito insalubre.

 

ET – Naquele tempo existia uma tradição interessante, o 'Comunicado ou Nota de Falecimento', anunciando em um impresso, metade de um A4, o falecimento de alguém, que eram sempre panfletados nas ruas... Lembra disso?

Tody – Demais. Eu tanto imprimia esses folhetos como também entregava. Como era uma chapa fixa, o Seu Lula já deixava pronto, porque tinha que fazer rapidinho, a gente só compunha o nome da pessoa falecida, o dia, o horário... As pessoas pediam para entregar, e como eu tinha muito tempo vago ali na gráfica, lá ia eu de casa em casa. Aí eu ganhava um dinheirinho a mais. Tinha dia, que eu chegava da rua, tinha que sair pra distribuir mais. Tinha gente que falava: “Não gosto nem de te ver,  moleque. Você só traz notícia ruim” (risos).

 

ET - E quando você parou de levar essas notícias ruins?

Tody - O Doriquinho era o impressor,  ele saiu  e o Itamar me colocou no lugar, eles faziam a chapa e eu imprimia. Mas se houvesse erro na chapa eu tinha que corrigir e fui treinando mais ainda. Depois evoluiu, afinal foram 49 anos lá dentro. 

 

ET – Você saiu de uma impressora manual, colocando papel por papel diante da chapa, depois veio a automática e chega a era da offset... Como foi enfrentar e evolução?

Tody - Durante muitos anos, mas muitos anos mesmo só havia a Gráfica Brasil na cidade. Mas não havia muito serviço, hoje é que há essa correria, as pessoas encomendam as coisas e com pressa. Tínhamos mais serviço na época de política, era dia e noite. Mas de um modo geral, o serviço, embora pouco, nunca faltou. Como hoje, sempre há serviço. Agora, a evolução foi muito grande, primeiro era tudo manual, depois veio a máquina automática e atualmente a offset, não a modernosa, que faz muitos serviços, mas ela é suficiente, atende bem a demanda. Eu ousaria dizer que as gráficas, no modelo atual, estão caminhando para a  extinção. Estão cedendo o lugar para as agências computadorizadas. Hoje, você pode fazer tudo por computador e fazer vários trabalhos ao mesmo tempo. 

 

ET – Você, hoje, se aposenta com mais tempo de serviço do que a própria idade do dono da gráfica, o Juninho, que já é a terceira Geração, o Seu Lulu, o filho Itamar e agora o neto.  Nesses 49 anos lembra do pessoal que passou por lá?

Tody – Lembro não, foi muita gente que passou por lá nesses 49 anos. Foram mais de 35 pessoas. Uns não tinham paciências, outros não gostavam. Foi muita gente que passou por ali depois que eu entrei... Mas ainda sei os nomes de muitos: seu Lulu, o Itamar, Doriquinho (irmão do Bimba), Nenzinho, depois entrou o Luizinho, Joãozinho Vieira, o Pardal, Saul Vieira, Conquista (filho do Sargento Cordeiro), Branco, filho do Seu Abner, da Rua 12, lembra?  Um contador de piadas. Ah, foi muita gente! Normalmente, entrava menino, aí ele ia crescendo e não ficava. O acabamento é muito complicado, não se pode errar, do contrário perdia-se o serviço todo. Se errasse um apenas, não tinha como consertar. 

 

ET – Por quê?

Tody – Por exemplo, notas fiscais que têm muitos números, são muitas vias, não pode errar nada. Se um numerador falhar, perde o serviço todo. É um serviço que exige muita atenção, a gente tem que ficar ligado o tempo inteiro ali e tem gente que não tem paciência. E assim foi... Foi muita gente... Depois já no novo endereço entraram os netos do seu Lulu. Aí a gráfica ficou com o  Itamar e o Luizinho, até que separaram a  sociedade. O Luizinho abriu a gráfica dele e o Itamar ficou na Gráfica Brasil, que hoje é do seu filho, Juninho. Da turma atual, o Murilo é o mais velho de casa, tem uns 10 anos lá...


ET - Então você foi o último dos moicanos?

Tody - Acho que agora acabou... hoje são as offsets que mandam. A gráfica tem uma maquina automática que ainda é usada para numerar. A máquina manual é usada para corte com vinco, convites. Da turma ali, só eu peguei no pesado de antigamente... Mudou demais e vai continuar mudando, já tem a offset computadorizada, mas a cada ano surgem equipamentos novos. Como eu disse, acho que as gráficas estão  fadadas a desaparecer... As agências estão dominando o mercado...

 

ET - Você teve quantos patrões  no seu único emprego na vida?

Tody - Não foram muitos,  não. Primeiro o seu Lulu, que era uma pessoa fantástica,. muito organizado... e uma coisa interessante, ele não era ganancioso,  não visava o dinheiro, não gostava que cobrasse demais dos fregueses. Ele era honestíssimo e não gostava de explorar as pessoas, fazia as coisas com um preço bem acessível, tinha dó das pessoas. O Seu Lulu era uma pessoa boníssima. O Itamar, era um amigão, a gente nem parecia patrão e empregado, pescávamos muito juntos. O Itamar tinha o mesmo sistema do seu Lulu, muito organizado com as coisas. O Luizinho também é uma pessoa boníssima, gosto demais dele, só que era meio nervoso. O Juninho já é a terceira geração, a da praticidade... correria... já não atuava na gráfica, mas no computador. Mas é também um grande amigo.


ET – Conta aí essa história do Luizinho nervoso. É verdade que um dia ele saiu aos berros com o Saul Vieira, então empregado, quando ele disse que o rádio a pilha do Juninho, comprado naqueles dias, era 'rouco'? 

Tody – (Depois de uma gostosíssima gargalhada) É, é... Mas não foi culpa do Saul, não. Quem mandou o Saul falar que o radinho do Juninho era rouco foi o Reverendo, tio do Juninho, só prá caçoar... O Juninho vivia se gabando do rádio: “Olha que rádio, que beleza, que som!!!” Vem o Saul de lá e responde: “É... pena que é rouco!!” Prá quê!!  O Luizinho ficou doido, saiu às tantas com ele. O Saul nunca mais voltou na Gráfica. E o Reverendo caiu na risada. (Outra gargalhada).

 

ET – Tody, só mais uma passagem. Naqueles anos 60/70, por incrível que pareça, a diretoria do Sacramento Clube não permitia sócios negros. E num daqueles Jogos de Inverno, fomos receber as medalhas e troféus no Sacramento Clube. Com receio, você não quis ir. Em solidariedade, os atletas decidiram: 'Se você não for, nós também não iremos...' E você acabou indo. E foi recebido com muito carinho. Lembra disso?

Tody – Sim... É verdade. Havia esse preconceito. Mas diante dos apelos dos colegas atletas, do Olegário, acabei indo, claro, com certo receito, mesmo. O desfecho dessa história foi o seguinte: Estávamos lá participando da 'Brincadeira Dançante', depois da entrega das medalhas, quando o Márcio Brigagão me perguntou se eu queria ser sócio do Sacramento Clube, se eu gostaria de assinar uma proposta. Disse que não, claro, estava tudo bem, e que não se preocupasse com aquilo.  Então, ele saiu e pouco depois voltou com uma proposta assinada por um sócio remido, me apresentando, que era uma condição para ser admitido. Quem assinou foi o Seu Luiz Afonso de Melo. Poucos dias depois, o Armelindo me disse: 'Olha, sua proposta ainda não foi aprovada, mas disseram que você já pode freqüentar o Clube...'  

 

ET – Nós não podemos terminar essa entrevista sem falar do Futebol. Se escalarmos a 'seleção do século' na cidade, com certeza você estaria nela... Fez história no CAS, não foi?

Tody - O futebol prá mim foi sempre um passatempo, como no campo do Hercinho. Comecei no infantil no Atlético com o João  Velho, aí o campo fechou e nós fomos para os Marianos, o João Velho levou a meninada do Atlético pra lá. Aí  passei do infantil e fui ser titular no Marianos, mas na gestão do Gaspar, voltei para o Atlético. Ele me chamou  e eu voltei. No Atlético joguei até parar e virei Conselheiro da diretoria.

 

ET - No seu tempo, o Atlético esteve no auge, até com jogadores profissionais....

Tody - Foi um tempo bom. Foi na gestão do João Osvaldo, depois do Alberto Amui. Tinha mesmo gente profissional, contratada de fora. De Sacramento, éramos apenas cinco, eu acho. O Cavaco, Ismar, Nono, Weber e eu, os outros eram todos de fora, profissionais. Alguns faziam república lá no campo e moravam lá e os técnicos vinham de fora, o Marambaia, o Bochecha e o Arroba.  Chegamos a disputar a primeira divisão. Foi um tempo bom aquele, mas passou. 

 

ET - Que lição  você tira desses 49 anos de gráfica? Aliás, o que é um exemplo, porque são raras as pessoas que permanecem tanto tempo assim num único serviço.

Tody - Tiro muitas lições, de companheirismo, de bondade, mas principalmente de aprendizagem e do trabalho, mesmo, pois  foi dali que tirei o meu sustento e o da minha família. Aprendi muito. Valeu a pena, porque trabalhar é muito bom, só que eu cansei. Já fiz o que tinha que fazer. Aposentei há 18 anos e continuei, mas decidi parar, vou curtir um pouco a vida. 


ET – Valeu a pena todo esse esforço? E, sem ser indiscreto, como pretende curtir a vida?

Tody – A vida só valeu a pena, está valendo. Fiz muitos amigos, aliás, o  que mais fiz na vida foram  amigos. Sou agradecido a Deus por tudo o que consegui, pelo que trabalhei, pelo que conquistei... Quanto ao curtir a vida, não sou ambicioso. Nada demais. Na verdade, não tenho planos, ainda não pensei o que vou fazer, está tão recente,  que não deu ainda pra sentir falta. Há um ditado que diz: “Tá nervoso,  vai pescar”. É o que estou fazendo, por enquanto estou curtindo a casa, os amigos e a pescaria, que sempre curti. Mas vou ter que pensar em alguma coisa, com certeza.