Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Esperança

Edição n° 1289 - 23 Dezembro 2011

Na visão da cicatriz percorrida do começo do abdômen até a ponta do joelho, representada por uma fileira de centenas de pontos resultados de várias intervenções cirúrgicas decorrentes da abstração de mais de dez tumores, cuja dor da trajetória do bisturi acompanhada da fatigante luta pela vida era visível nos olhos daquele que as suportara, recebi em meu escritório um cliente para produzir a sua defesa em um processo judicial.

Em que pese o pleito requerido não ter pertinência alguma com o fato acima descrito, não pude deixar de me sensibilizar e de fazer algumas reflexões sobre a existência humana, além de admirar a garra com que aquele martírio estava sendo enfrentado por aquele que trazia em si as marcas indeléveis do embate pelo direito de viver. 

Realmente, dirão alguns, a vida não é fácil. Dirão outros que ela é simples demais, nós é que a complicamos. Agora, uma coisa é certa, tudo irá depender de como a encaramos. Se aceitarmos os percalços inerentes do “estar vivo”, visto que só morre, adoece, sofre ou compadece aquele que ainda usufrui do “combustível” exalado pelas árvores, estaremos mais esclarecidos com a realidade que nos cerca. O ensaísta Antônio Roberto pondera (de forma dura, mas realista e necessária) que quando uma tragédia ocorre o que mais se ouve é a expressão da indignação: “Por que comigo?”, quando a pergunta mais correta e sensata – baseada na certeza de que existo – seria: “Por que não comigo?”.

É certo que muito do que se observa na dor de uma realidade extremamente sofredora que a vida muitas vezes impõe a determinadas pessoas (por que tantos sofrem em demasia e outros não?), nos leva à crença fundamentada no mistério da morte de que, esta pessoa que tanta dor sentiu ou sente, ainda irá, nem que seja em outra vida, alcançar a redenção, o alívio, e a paz. Isso não só nos reconforta e fortalece como nos impulsiona para o enfrentamento e a aceitação dos desafios terrenos. E a isso se chama esperança.

Não há preceito de índole cética que me convença que este raciocínio esteja errado. Acreditar apenas que tudo é fruto do acaso e da genética é conceder à própria natureza da criação uma dimensão baseada na injustiça. E a natureza não é injusta, pelo contrário, ela é baseada no equilíbrio.

No entanto, o que não se pode, e não se deve, é fundamentar as atitudes benéficas em um possível medo do fogo do inferno ou de qualquer outra coisa que o valha, mas devemos sim praticar e semear o bem pelo simples motivo de que não existe outro meio melhor para se viver em sociedade. Em primeiro lugar deve estar a compaixão verdadeira para com o seu semelhante, para aquele que agoniza e que mais precisa de uma mão amiga. O homem deve agir para que todos tenham o que ele tem, para que todos possam sorrir como ele sorri, se você não puder ver no rosto de seu irmão a mesma alegria que reluz em sua face, nunca se sentirá completamente feliz.

A indignação e a revolta perante os acidentes do caminhar humano é o que nos sufoca, nos prende e nos paralisa; já a aceitação é o primeiro passo em direção à libertação da alma que não desiste de lutar pela vida, já que esta é para ser vivida, e jamais para ser possuída.

Como nos alerta o escritor Jesus Trindade Barreto, “é preciso que o homem desperte para a magnitude da existência poética da vida, não necessariamente para uma poesia escrita ou falada, mas sentida”. Pois não estaria ela em um ipê florido, lá na mata? No arco íris ou na cachoeira? Na vivacidade de uma criança? No luar e nas estrelas? Ou nas curvas de uma linda mulher?

Certa feita, um mestre e seu discípulo caminhavam em uma bonita tarde de outono quando o jovem aprendiz interpelou o velho sábio:

- Mestre, é possível medir a dor humana? Qual seria a extensão do sofrimento?

O velho, olhando calmamente para o jovem, disse:

- Traga-me um punhado de sal e um copo com água. Jogue o sal na água. Beba a água. Qual o gosto?

- Horrível, muito salgada e forte – respondeu o discípulo.

  - Traga-me outro punhado de sal, vamos até o rio – chegando lá, continuou o ancião – agora jogue o sal no rio, beba a água, qual o gosto?

- Natural, refrescante, nem sinto o gosto do sal – respondeu o jovem.

E o mestre, então, com uma serenidade no semblante, respondeu:

- Quando sofremos, por mais difícil que seja, devemos valorizar ao máximo as coisas boas que nos cercam, procurar a beleza da vida em cada pequeno gesto. O tamanho e a extensão do sofrimento irão depender da importância que nós damos, ou daremos a ele nas nossas vidas. Assim, deixemos de ser o copo, e sejamos o rio.

 

Que neste natal, sorrisos não sejam roubados, e que o menino Deus possa renascer nos corações aflitos, levando a certeza de que nenhuma lágrima suplantará a alegria de um novo e reconfortante amanhecer.

 

 

Ricardo Alexandre de Moura Costa 

(Da Matta) - advogado