Nasci quase que embrulhada nas páginas do ET. Garotinha, meu tio me levava como 'jornaleira' para ajudá-lo nas distribuições quinzenais do pasquim que me fez apaixonar pelo Jornalismo e lá fui eu, nos passos do jornalista que o fundou, num lonqínquo 1968. Quando nasci, o 'Estadinho' já era uma criança com juízo, 1975. Juízo? Palavrinha despudorada para aquela irreverente turma que tocou o jornal nos primeiros anos. E assim fui crescendo entre uma edição e outra; entre uma perseguição e outra e até uma prisão e outra... Mais tarde, nas leituras e no reflexo vivido em casa, e na pele, senti o que representou 68 na minha vida. Foi muito mais do que o grito de 'Hair'!! Foi muito mais do que o apocalipse do Vietnam!! Foi muito mais do que a UNE, os Beatles, a Bossa Nova e as canções de Vandré. O ano de 68 foi um marco precioso para Sacramento, quando o jovem Walmor Júlio Silva, criou e fundou este jornal, em plena ditadura. Na pauta, a cabeça de uma entrevista carinhosa, mas 'sem lenço nem documento’. Ruth Gobbo
Ruth - Como nasceu o jornal 'O Estado do Triângulo'?
Walmor - O jornal ET nasceu dentro de uma conjuntura político-social muito conturbada, vivida pelo país nos anos 60. Em 1º de novembro de 1968, quando editamos o número piloto do jornal, já estávamos no quarto ano de um governo militar que prendeu, torturou e desapareceu com centenas de brasileiros. Na conta da Anistia Internacional, 500 brasileiros morreram e 30 mil foram torturados. Eu estava saindo da Faculdade de Filosofia Santo Tomás de Aquino, curso de Pedagogia, com as idéias revolucionárias de todos os filósofos na cabeça. De Sócrates a Marx, de Spinoza a Sartre e apenas 17 aninhos de experiência de vida, queria reformar o mundo. E um dos caminhos foi a criação do GES – Grupo de Estudos Sociais, cujo objetivo era, 'A promoção e conscientização do homem pelo homem, na ação', estampado na capa da primeira edição. O jornal ET nasceu fruto da Primavera de Praga, passou pelo grito dos estudantes de Paris, pela morte de Luther King nos Estados Unidos, gritou com a UNE e cantou com Vandré: 'Quem sabe faz a hora, não espera acontecer'.
Ruth – Um Grupo de Estudos Sociais em 1968, bem colado ao AI 5, que coragem foi essa?
Walmor - Na verdade, a coragem foi de todo o grupo, mas a idéia nasceu do Olavinho Caramori, sacramentano que estava fazendo engenharia na UNB. E a UNB naquela época era a referência que tínhamos da resistência contra a ditadura. Olavinho nos contava das invasões da Universidade pelo exército, o trabalho da UNE – a União Nacional dos Estudantes, e nós aqui, na pacata Sacramento, topamos a idéia. Agora, a revolução proposta pelo GES era uma revolução na cabeça das pessoas, longe de uma luta armada. Na nossa incipiente ideologia, era a utópica 'promoção do homem pelo homem através de sua conscientização'. Muitos anos depois revendo esses conceitos, eu me dei conta de que, apesar de utópica, aquela transformação, como éramos muito cristãos, era centrada nos próprios evangelhos. O sermão da montanha fala muito perto dessa 'transformação', que até usei como tema da peça 'Alienados', escrita nos anos 70.
Ruth – 1968! Foi um ano fantástico, não? Estou me lembrando do Festival de Arte e Cultura do Colegial – FACC de 98, quando vocês reapresentaram 'Alienados'. Estava lá fotografando...
Walmor – Inimaginável!! Senti, porque os professores não abordaram os 40 anos de 68. Aliás, nenhuma escola explorou o tema. Cadê o protagonismo juvenil de nossas escolas? Sabia que só a Escola Coronel tem Grêmio Estudantil? Eu costumo falar, antes e depois de 68. Os meninos têm sempre que recordar aqueles 'anos de chumbo', principalmente, para abominá-los. Primeiro, alguns acontecimentos trágicos, a começar do Ato Institucional número 5, que joga o país na ditadura sem disfarces. Nos Estados Unidos, os assassinatos de dois grandes líderes, Dr. Martin Luther King Jr. e Bob Kennedy, defensores dos direitos civis; a Primavera de Praga, quando as forças soviéticas invadem a Tchecoslováquia; em maio, o movimento estudantil de Paris, de onde tiramos o slogan, “La lutte continue”...
Ruth - No Brasil, a UNE faz a passeata dos 100 mil, no Rio...
Walmor - Por conta do assassinato do estudante Edson Luiz, no restaurante Calabouço. Na frente da passeata, de braços dados, estudantes, intelectuais e artistas, foi daí que tiramos outro grito de luta: “O povo unido jamais será vencido”. Dr. Zerbine faz o primeiro transplante do coração; Vandré, no final do ano, nos faz cantar com ele: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber / quem sabe faz a hora, não espera acontecer...”. E, em Sacramento, no dia 1º de novembro, circula a primeira edição do jornal O Estado do Triângulo. Concluindo, que outro espírito e que outra linha poderia ter o nosso ET?
Ruth – Vamos saber aí quem é quem nessa história. Quando você fala de 'todo o grupo', está se referindo a quem? Um grupo bem politizado...
Walmor – É aí que vejo a diferença entre os jovens daquela época e os jovens de hoje. Éramos muito mais politizados política e ideologicamente, por conta, principalmente, de uma leitura assídua e sem essa terrível TV. Líamos muito mais. Às vezes, me pergunto: como ficar sem ler Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos? De Dom Helder, líamos seus discursos, que nos chegavam através de Olavinho. Jean Paul Sartre, Rose Maria Muraro. .. Isso tudo era e é leitura obrigatória dos meninos. Mas ninguém lê mais, até pro vestibular, pegam o resumo pronto na Net.
Ruth - Está divagando... (risos) Mas e o grupo?
Walmor – Bom, nós tínhamos dois grupos bem atuantes. O mais 'velho', no sentido de que estavam 'transformando o mundo' há mais tempo, dizendo-se apolítico, tinha uma preocupação muito grande com o desenvolvimento e o progresso da cidade. Mas depois enveredou na política, e se saiu muito bem, elegendo quatro vereadores do grupo e um prefeito. Estou falando da ODUS – Organização dos Universitários Sacramentanos, fundadora do revolucionário, 'O Passa Perto'. A ODUS foi fundada em dezembro de 1961, pelo Dr. Jamil Salim Leme, Serginho Rezende, José Caramori, o Hélsio Duarte, Ivan Cordeiro, José Arthur, Evandro Gobbo, Clermon Castor, José Armando, Dalmo Scalon, o Raul do Conde e o José Alberto, eleito por aclamação o seu primeiro presidente. Pessoal cheio de coragem: certa vez, vestiram-se todos de preto, fizeram um caixão com o nome do prefeito, desfilaram pelas ruas do centro e, em frente à Prefeitura botaram fogo no caixão. Hoje, quase 500 universitários na cidade, não reclamam sequer contra a meia-entrada a que têm direito nos eventos realizados na cidade.
Ruth – Mas era o Clube do Bolinha! (risos). E o outro grupo?
Walmor – Não, tinha Luluzinha também... Na fundação da ODUS estavam presentes três universitárias, a Salete Cabral Leme, a Maria Elisa Bonatti e a Maria de Lourdes Mendes. A Da. Célia e a Mariú também fizeram parte da ODUS. O outro grupo era o nosso. Nessa época, ainda estudantes secundaristas. Tínhamos a União Estudantil Sacramentana (UES) ligada à UCMG – União Colegial de Minas Gerais, que, por sua vez, era ligada à UNE, a União Nacional dos Estudantes. Não perdíamos um Congresso no estado. Esse grupo era formado pelo Zulmar Ferreira, (o Azulão) Paulo Neto Borges (o grande Cocão, que morreu tão jovem), o Mário Guarato, o Ariston Timóteo de Almeida, o José Rosa, Luiz Rodrigues, dentre outros. Nessa leva aí, despontou o nosso grupo, já no fim dos anos 60, quando criamos o GES. Éramos o Olavinho Caramori, o próprio Ariston Timóteo, Saul de Souza Viera, Márcio Cunha, Jaiminho Araújo, o Shiro Karashima, o Osmar Gonçalves (um rapaz muito louro, que a gente chamava de Vanuso), o Cilmo Alencar e eu... Todos com aquela utopia de 'transformar o mundo'...
Ruth – Transformaram?
Walmor – Não, claro que não. Mas vou responder com uma frase de William Vemk: “Entre escolher a dor e o nada, eu escolho a dor”. Eu não falei do grupo atual, a quem sou muito grato também, pois vejo nele a mesma motivação idealista de quando começamos. Ganha pouco e trabalha muito: a excelente Flavinha, na redação, que está conosco há 15 anos; a grande repórter, Maria Elena; você, com suas férteis idéias; o free-lancer, Carlos Mayer; O Élvio foi free também por uns tempos; o carinhoso apoio da Manja na publicidade, alguns parceiros como o Alessandro Abdala, da Impacto; os irmãos fotógrafos, Wellington e Juninho; a gráfica Brasil, do Juninho, e sua fabulosa equipe. E, outros colaboradores, a quem somos muito gratos. Além de todos os nossos queridos jornaleiros, atualmente, o Rogério, o Júlio, o Antônio e a turma da Helena do Ferreira...
Ruth – O que de fato pregava o GES?
Walmor - O GES propunha a formação de um cidadão consciente de seus direitos, de seus deveres, mas sem opressão. Éramos todos subversivos nesse sentido, de querer um país democrático, aberto a todas as ideologias e partidos políticos. Como dizia o Xavim, temos que 'lutar pela promoção do homem'. Foi quando vi que poderíamos chegar aos lares dos sacramentanos através de um jornal. Lembrando de novo 'Alienados', minhas alunas do antigo Curso Normal gritavam na peça: 'Quem compra um jornal compra uma idéia'... Com o apoio desse último grupo, fundei 'O Estado do Triângulo'.
Ruth – Naquele ano de 1968 quantos jornais circulavam em Sacramento?
Walmor – Não me lembro bem. Se não me engano, apenas 'A Marcha do Estudante', o jornal da União Estudantil Sacramentana. A UES foi fundada em junho de 1962, depois da ODUS, tendo como primeiro presidente, o Arnaldo Zandonaide, o Nonô. E logo fundararam 'A Marcha do Estudante', que circulou até o desaparecimento da entidade. Começou como um jornal mimiografado. Nessa fase eu trabalhei nele, como secretário da UES. Mais tarde, creio que na gestão do Júlio Bonitinho, ele passou a ser impresso. 'O Passa Perto', o jornal da ODUS, acabou em dezembro de 1964, na edição 18. A edição número19, de janeiro de 1965, infelizmente, circulou com o nome de 'O Correio de Sacramento'. Mudaram o nome, não sei por quê. Aliás, a sugestão dada por Magalhães Pinto, então governador de Minas, falando à população do parlatório do Paço Municipal, aquele prédio antigo da Prefeitura, antes da reforma, foi que mudassem o nome para 'A Revolução'. O pessoal da ODUS, como era de se esperar, arrancou de 5ª. Depois mudaram para 'O Correio de Sacramento', que morreu pouco depois. Então, o ET nasceu assim num momento de marasmo jornalístico na cidade.
Ruth – E por que 'O Estado do Triângulo'?
Walmor – No dia 28 de outubro de 1967, um grupo formado por lideranças políticas, empresariais e simpáticos à causa de emancipação das regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba reuniu-se em Araxá e redigiu o Estatuto da 'União para o Desenvolvimento e Emancipação do Triângulo', mais conhecida pela sigla, UDET. Liderada por um político uberabense, o Ney Junqueira, naquele início, estavam buscando apoio das lideranças locais, prefeitos, vereadores, simpatizantes para que o movimento ganhasse força. Em Sacramento, uma das lideranças mais motivadas era o Dr. Amur. Daí, vislumbrei essa idéia do nome, associando à causa da separação o nome do jornal. E pegou, nasceu 'O Estado do Triângulo'. Um novo estado englobando as regiões do Alto Paranaíba e Triângulo, com uma área de 120 mil Km2, 75 municípios e uma população, hoje estimada em 1.800.000 habitantes.
Ruth – Que fim levou o GES? E seus companheiros?
Walmor – O GES enquanto entidade jurídica, na verdade, nunca existiu. Só nas nossas cabeças. Mas as suas idéias continuaram existindo através do jornal nesses últimos 40 anos. Quanto aos companheiros, à medida que iam concluindo o ensino médio, eram obrigados a sair de Sacramento para continuar os estudos. Mas outros aderiam à causa, como o Efrém de Souza Vieira, o Astolfo Araújo, o João Bosco Martins, José Luiz Pucci, José Luiz Martins (Catão), Ivone Regina, Sandra Francesca, Pe. Gil Barreto Ribeiro... Mais tarde colaboraram o Júlio Gaspar Jerônimo, Maria Luísa Silva Melo, Andréa Cladeira, Cleonice Castor, Saulo Wilson... Me desculpem, com certeza, devo estar esquecendo alguém... Agora, o jornal ET teve três grandes esteios naqueles anos 70, sem os quais não teria sobrevivido a essas quatro décadas: o Ariston Timóteo de Almeida, homenageado ainda hoje como 'Presidente de Honra'; o Alberto de Souza Vieira, o grande Bertim, e a Sônia Borges, a quem a gente carinhosamente chamava de Magrela.
Ruth – Desde a fundação do ET, qual foi a linha do jornal e como era o relacionamento do jornal com os poderes constituídos, em especial Legislativo e Executivo. Tumultuada como nesses últimos anos?
Walmor – O jornal nasceu, como eu disse, com aquele espírito 'revolucionário' de 68, uma tendência à esquerda, uma das propostas do GES. Já no primeiro número, o Xavim Caramori dizia: “Temos que lutar é pela promoção do homem, não pela promoção da máquina, do capital ou do Estado”. E continuou assim valorizando o Homem, os anseios da comunidade, ouvindo o povo, denunciando, clamando, mas principalmente noticiando os fatos e acontecimentos da cidade. 'Revolucionário' nesse sentido, de não ser um porta voz da elite financeira e gestora da cidade. Acho que nesses 40 anos somos um acervo cultural e histórico fabuloso.
Ruth – Não há dúvida! Mas volto ao relacionamento. Não podemos dissociar da história do jornal ET essa conturbada relação, que sabemos, rendeu pra você, além de desencanto, perseguições e até prisão. Vamos abrir o jogo, 'sem lenço nem documento', fale desse relacionamento com os prefeitos e vereadores...
Walmor – Um pouco mais, um pouco menos, foi sempre azedo. Outro dia, dei a seguinte resposta a alguns estudantes que me entrevistaram: Nosso jornal, nesses quase 40 anos de existência nunca teve um relacionamento compradesco com nenhum dos prefeitos eleitos. Alguns momentos de calmaria, outros de muita animosidade, outros de 'deixa pra lá', e poucos, bem poucos de um relacionamento saudável. Da Arena ao MDB, do PFL ao PT, sempre tivemos rusgas. Por conta de quê? Da linha independente do jornal, claro. Como sempre demos crédito aos clamores da população, e tudo era entendido como crítica aos poderes. Não de quem denunciava, mas minha, do Aristom, do Bertim, da Sônia, da Maria Elena... E político não gosta de crítica. Não me eximo também de reconhecer que em muitas matérias fomos sectários, no sentido de não expor a opinião do outro lado. Deveríamos ter sido mais éticos, mais profissionais. Era o arroubo dos 20 anos, como dizíamos: 'queríamos transformar o mundo'. E diante da ignorância política nossa, havia um outro aspecto. Servíamos como títeres de velhas raposas políticas da época, velhos caudilhos que nos usavam pra, de fora, receberem o dividendo político. Mais tarde a gente reconheceu tudo isso e vimos o quanto fomos ingênuos.
Ruth – Por conta dessas críticas, o jornal chegou a ter o seu Título de Utilidade Pública cassado. Como aconteceu isso?
Walmor - A culminância desses lamentáveis fatos aconteceu em 1975, quando a Câmara cassou o título de Utilidade Pública de nosso jornal, quase que por unanimidade dos 11 vereadores. Houve apenas uma abstenção, a do vereador do MDB, Dalmo Scalon. Não participei diretamente do ocorrido, pois naquele ano eu estava na Europa. Fiquei sabendo do que estava acontecendo através de cartas. Mas o motivo ou o pretexto foi até hilariante. Tudo por conta de um artigo escrito pelo companheiro Ariston, 'A guerra dos órgãos', numa alusão à Câmara Municipal, que 'travava' tudo. Mas isso é outra história. Pois bem, no final do ano, quando retornei, demos o troco: Publicamos na edição do Natal de 1975, uma página em branco, cercada, com o título: 'Progresso de Sacramento em 1975'. Lá no rodapé, o subtítulo, 'Paz e amor aos responsáveis'. Quer dizer, a Câmara cassa o título e nós descontamos no pobre do prefeito, que deve ter apoiado, claro, mas o ato não foi do Executivo. Então, o que quero dizer é que erramos muito também.
Ruth – Que relação tem esse fato da página em branco com sua prisão em março de 76, na Escola Coronel? Ou foram fatos distintos?
Walmor – Teve tudo a ver, claro. A idéia da página em branco foi minha e paguei caro. Em março de 1976, alguns alunos picham a Escola Coronel, onde eu já lecionava. Não deu outra, prefeito e presidente da Câmara me acusaram. Resultado: na manhã do dia 24 de março, seis soldados da Polícia Militar de Minas Gerais, armados até os dentes com metralhadoras e escopetas, me seqüestraram na entrada da Escola Coronel, e me levaram de camburão para a Polícia Federal, em Belo Horizonte, acusado de terrorista. Bandido de alta periculosidade.
Ruth – O jornal paga caro por muitas outras coisas só pelo fato de denunciar alguma coisa errada. Isso é mais contundente em cidade pequena. Trabalhei em jornais maiores, em outras cidades, e não senti isso. Aqui, nós perdemos amigos... Ainda bem que não prendem mais.
Walmor – Mas te exoneram da escola! Ou da faculdade, como fizeram com a Maria Elena!! Esse lado da imprensa de denunciar as reclamações dos cidadãos em relação ao que está errado é o mais constrangedor pra nós, jornalistas, principalmente por conta das inimizades que, gratuitamente, angariamos, como você lembrou. O fato de defendermos uma cidade politicamente ecológica e com o seu patrimônio histórico e cultural preservado, um governo ético e transparente, cada vez que levantamos essa bandeira, perdemos um amigo... E somos criticados.
Ruth – Não te faz desanimar?
Walmor – Nem um pouco. Paciência, vamos continuar falando do absurdo que é asfaltar sobre o calçamento, arrancar as lápides de nossos passeios e trocá-las por lajotas, como fizeram todos os bancos da cidade. Na última semana mesmo cobrimos dois descasos com nosso patrimônio histórico. Destruíram o prédio quase centenário da primeira rodoviária de Sacramento, a Auto-Viação, um crime. E a prefeitura não teve peito para embargar a obra. O outro, um jovem e proeminente empresário foi tão ousado que pensei: meu Deus, esta cidade virou mesmo terra da mãe Joana. Ele quebrou todas. Eu digo, “todas”, as lápides históricas de um lado do passeio em frente à sua loja, para, segundo ele, “refazer o passeio”, com a aprovação da Prefeitura. Como ficar calado diante de loucuras como essas?
Ruth – Como estamos abrindo o jogo, voltando ao seu seqüestro, 1976, governo Médici, um dos mais violentos, te torturaram?
Walmor – Fisicamente, não. Mas a tortura psicológica foi terrível. Saí de manhã de Sacramento, passei pelos quartéis da PM de Araxá e Bom Despacho, sempre ouvindo ameaças do que estava me esperando. Na manhã seguinte, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais de MG interveio e, descobrindo onde eu estava, plantaram lá um repórter. Também um deputado amigo, o Leão Borges, intercedeu a meu favor. No terceiro dia estava de volta. Me soltaram porque ficaram sabendo quem realmente pichou a escola. Mas como eram todos estudantes, menores, filhos de famílias de destaque na cidade, abafaram tudo. O colega, José Ignácio Ferreira, estudante do 2º Colegial, também seqüestrado na saída da missa, que celebraram depois de minha prisão, ficou também cinco dias desaparecido.
Ruth – A partir desses acontecimentos, como ficou o jornal?
Walmor - Ao longo de alguns poucos anos, o ET passou a receber quase que uma censura prévia. Pois, tínhamos que apresentar as matérias editadas na sede da Polícia Federal, em Uberaba, para um tal delegado, 'Miralha', ou 'Metralha', sei lá, não me lembro mais, antes de ir à impressão. E muitas outras vezes, tive que prestar esclarecimentos, nessa mesma delegacia, sobre algumas matérias editadas. Foi um período terrível. Não por questões ideológicas de esquerda, mesmo porque o jornal não fazia essa apologia. Mais por conta da política que detinha o 'poder' na época. Vasculharam minha vida de ponta cabeça. Na Câmara Municipal, onde passei a atuar como vereador, havia agentes me observando no plenário da casa. Pode consultar os anais que você vai ver lá meu pronunciamento de protesto. Alguns anos depois, o amigo, Jean Marc Amez-Droz, me contou que foram à rua de Gravelone, 72, onde me hospedei, em Sion (Suíça) buscar informações a meu respeito. A Polícia Federal em BH insistiu nessa tese de que eu teria ido pra Europa fazer curso de guerrilha. Pode? Nossa arma foi sempre a caneta...
Ruth – E o jornal só vendendo?
Walmor – Então, sempre tivemos uma lista imensa de assinantes. Graças a Deus! Alguns estão conosco há 40 anos. Também alguns anunciantes. Devemos muito a essas pessoas, por essa fidelidade e confiança. Somos muito gratos a esse pessoal.
Ruth – Revendo hoje essa história, mesmo diante de todos esses revezes, valeu a pena?
Walmor – Sem citar Fernando Pessoa e sem ser modesto, diria que construímos um empreendimento bem sucedido. Não estou falando no sentido financeiro, porque, pra quem trabalha com ideal, com amor, isso conta quase nada, não é mesmo? Não vale é tomar prejuízo, mas até isso tomamos. Falo no sentido de tentar construir um mundo melhor. No sentido de narrar, durante 40 anos, parte dos acontecimentos desta terra, como porta-voz de toda a comunidade, sem nos esquecer do que nos propusemos desde o início, a de manter essa visão dialética de Marx, de dar voz e vez ao povo oprimido. Se Deus me der vida e saúde, quero continuar assim, como Jean Paul Sartre, já velhinho, nas ruas de Paris, distribuindo panfletos político-estudantis. E penando por ver a alienação de nossos jovens, com boas exceções, que vivem preocupados se Felipe Massa vai ou não vencer Hamilton para ser campeão do mundo, e entrando na estatística daqueles que elegem os 'severinos' e 'malufs' da vida!!! Se tivesse os mesmos amigos e queridos companheiros que compartilharam essa história comigo, faria tudo de novo, porque valeu a pena, sim.