Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Cont - Dois Papas: dois modelos de homem, dois modelos de Igreja

Edição nº 1709 - 10 de Janeiro de 2020

O Papa Francisco: terno, fraterno e inovador

Com referência ao Jorge Mario Bergoglio, agora Papa Francisco, diria o seguinte: Conhecemo-nos em 1972 no Colégio Máximo de San Miguel em Buenos Aires, cada um discorrendo sobre a singularidade do caminho espiritual de Santo Inácio de Loyola (ele) e o caminho espiritual de São Francisco (eu). Ai discutimos a vertente da teologia da libertação de tipo argentino (do povo silenciado e da cultura oprimida) e a nossa brasileira e peruana (sobre a injustiça social e a opressão histórica sobre os pobres e afrodescendentes). Deste encontro há uma foto que ele, desde Roma, teve a gentileza de me mandar, onde aparecemos, todo um grupo de teólogos e teólogas, a maioria não mais entre nós, alguns perseguidos e torturados pela repressão bárbara dos militares argentinos ou chilenos. Depois nos perdemos de vista. 

 

O Papa Francisco: teólogo da libertação integral

Soube pelo seu professor de teologia, recentemente falecido, Juan Carlos Scannone, o representante maior da teologia da libertação argentina. que Bergoglio entrou para a Ordem Jesuítica como vocação adulta (era químico antes, como aparece no filme). Entusiasmou-se logo com a teologia da libertação e aí mesmo fez um voto que cumpriu sempre, mesmo como cardeal de Buenos Aires: toda semana passar uma tarde ou mesmo um dia numa favela (villa miseria), sempre sozinho, entrando nas casas e conversando com todo mundo.

Foi Superior Maior da Província dos Jesuitas da região de Buenos Aires. Era muito rigoroso. Aqui teve que enfrentar uma situação gravíssima que carregou no coração até os dias de hoje: dois jesuitas, o padre Jalish e o padre Yorio (que conheci pessoalmente em Quilmes) viviam numa favela, apoiando os pobres e marginalizados. Quem trabalhava com o povo, como no Brasil de 1964 (e talvez também hoje sob o novo governo) seriam considerados marxistas e subversivos. Eram vigiados pelos órgãos de segurança dos militares. Bergoglio soube que seriam sequestrados com as torturas que se seguiam. Tentou salvá-los até apelando ao voto de obediência, típico de sua Ordem, no sentido de abandonaram a favela para não serem vítimas da repressão.

Eles argumentaram de forma evangélica: “um pastor não abandona seu rebanho, seu povo; participa de seu destino; vale mais obedecer ao Deus dos pobres do que obedecer a um superior religioso”.

Efetivamente foram sequestrados e duramente torturados. Jalish se reconciliou com Bergoglio e vive na Alemanha, enquanto Yorio se sentiu abandonado e distanciou-se dele (morreu no Uruguai, anos atrás). Pude sentir sua amargura pessoal, ao mesmo tempo que procurava entender o impasse que uma autoridade religiosa, com responsabilidade, enfrenta em situações-limite. Mesmo assim, Bergoglio escondeu a muitos no Seminário Maior de San Miguel ou os levou até a fronteira de outro país para fugirem da morte certa.

 

Papa Francisco: o cuidado da Casa Comum

Ao ser eleito Papa, voltamos a nos comunicar. Sabendo que havia me ocupado intensivamente com o tema da ecologia integral, envolvendo a Casa Comum, a Mãe Terra, solicitou-me subsídios, coisa que fiz com assiduidade. Mas logo me advertiu:”não mande os textos para o Vaticano, pois, não me serão entregues (o famoso sottosedere da Cúria: sentar em cima e esquecer) mas envie-os diretamente ao embaixador argentino junto à Santa Sé, especialmente aquele que todos os dias, bem cedo, toma o chimarrão (el mate), comigo”. Assim fiz sempre. Dizem por aí que se nota a presença  de pensamentos e tópicos meus na encíclica Laudado Si: sobre o cuidado da Casa Comum (2015) Igualmente enviei textos para  o Sínodo Panamazônico de 2019. Respondeu várias vezes agradecendo.

Ao escolher o nome de Francisco sob inspiração de seu amigo brasileiro, o Card. Dom Cláudio Hummes que lhe sussurou logo fazer uma opção clara pelos pobres, ele se transformou. O rigor jesuítico se uniu com a ternura franciscana. Com os problemas internos da Cúria, a pedofilia e a corrupção financeira dentro do Banco do Vaticano é extremamente rigoroso. Contrariamenete, com o povo é visivelmente terno e fraterno.

Nenhum Papa anterior castigou tão duramente o sistema que perdeu a sensibilidade, a solidariedade com os milhões de pobres e famintos, a capacidade de chorar e que são adoradores do ídolo do dinheiro. Depredam a natureza e são anti-vida e anti-Mãe Terra. Não precisamos declarar a que sistema se refere. Sua opção pelos pobres é altisonante. Tornou-se por suas posturas corajosas face à emergência ecológica da Terra, ao aquecimento global e à desumanização das relações humanas, um líder religioso e político. Sua voz é ouvida e respeitada pelo mundo afora.

 

 

Leonardo Boff

 

Continua na próxima semana...