Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

O eclipse da ética na atualidade

Edição nº 1676 - 24 de Maio de 2019

Em 2018 realizou-se em Belo Horizonte um congresso internacional organizado pela Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER) em torno dos temas:  Religião, Ética e Política. As exposições foram de grande atualidade e de qualidade superior. Refiro-me apenas à discussão acerca do Eclipse da Ética que me coube introduzir.

A meu ver dois fatores atingiram o coração da ética: o processo de globalização e a mercantilização da sociedade.

A globalização mostrou os vários tipos de ética, consoante as diferenças culturais. Relativizou-se a ética ocidental, uma entre tantas. As grandes culturas do Oriente  e as dos povos originários revelaram que podemos ser éticos de forma muito diferente.

Por exemplo, a cultura maia coloca tudo centrado no coração, ja que todas as coisas nasceram do amor de dois grandes corações, do Céu e da Terra. O ideal ético  é criar em todas as pessoas corações sensíveis, justos, transparentes e verdadeiros. Ou a ética do “bien vivir y convivir” dos andinos assentada no equilíbrio com todas as coisas, entre os humanos, com a natureza e com o universo.

Tal pluralidade de caminhos éticos teve como consequência uma relativização generalidade. Sabemos que a lei e a ordem, valores da prática ética fundamental, são os pre-requisitos para qualquer cvilização em qualquer parte do mundo. O que observamos é que a humanidade está cedendo diante da barbárie rumo a uma verdadeira idade das trevas mundial, tal é o descalabro ético que estamos vendo.

Pouco antes de morrer em 2017 advertia  o pensador Sigmund Bauman: “ou a humanidade se dá as mãos para juntos nos salvarmos ou então  engrossaremos o cortejo daqueles que caminham rumo ao abismo”. Qual é a ética que nos poderá orientar como humanidade vivendo na mesma Casa Comum?

O segundo grande empecilho à ética é  mercantilização da sociedade, aquilo que Karl Polaniy chamava já em 1944 de “A Grande Transformação”. É o fenômeno da passagem de uma economia de mercado para uma sociedade puramente de mercado. Tudo se transforma em mercadoria, coisa já prevista por Karl Marx em seu texto A miséria da Filosofia de 1848, quando se referia ao tempo em que as coisas mais sagradas como a verdade e a consciência seriam levadas ao mercado; seria “tempo da grande corrupção e da venalidade universal”. Pois vivemos este tempo. A economia especialmente a especulativa dita os rumos da política e da sociedade como um todo. A competição é sua marca registrada e a solidariedade praticamente desapareceu.

O que é o  ideal ético deste tipo de sociedade? É a capacidade de acumulação ilimitada e de consumo sem peias, gerando uma grande divisão entre um pequeníssimo grupo que controla grande parte da economia mundial e as maiorias excluidas e mergulhadas na fome e na miséria.   Aqui se revelam traços de barbárie e de crueldade  como poucas vezes na história.

Precusamos refundar uma ética que se enraíze naquilo que é específico nosso, enquanto humanos e que, por isso, seja universal e possa ser assumida por todos.

Estimo que que em primeiríssimo lugar é a ética do cuidado que segundo a fabula 220 do escravo Higino e bem interpretada por Martin Heidegger em Ser e Tempo constitui o substrato ontológico do ser humano, aquele conjunto de fatores sem os quais jamais surgiria o ser humano e outros seres vivos. Pelo fato de o cuidado ser da essência do humano, todos podem vive-lo e dar-lhe formas concretas, consoante suas culturas.. O cuidado pressupõe uma relação amigável e amorosa para com a realidade, da mão estendida para a solidariedade e não do punho cerrado para a dominação. No centro do cuidado está a vida. A civilização deverá ser biocentrada.

 Outro dado de nossa essência humana é  solidariedade e a ética que daí se deriva. Sabemos hoje pelo bioantropologia que foi a solidariedade de nossos ancestrais antropóides que permitiu dar o salto da animalidade para a humanidade. Buscavam os alimentos e os consumiam solidariamente. Todos vivemos porque existiu e existe um mínimo de solidariedade, começando pela família. O que foi  fundador ontem, continua sendo-o ainda hoje.

Outro caminho ético, ligado à nossa estrita humanidade, é a ética da responsabilidade universal, Ou assumimos juntos responsavelmente o  destino de nossa Casa Comum ou então percorreremos um caminho sem retorno. Somos responsáveis pela sustentabilidade de Gaia e de seus ecossistemas para que possamos continuar a viver junto com toda a comunidade de vida.

O filosofo Hans Jonas que, por primeiro, elaborou “O Princípio Responsabilidade”, agregou a ele a importância do medo coletivo. Quando este surge e os humanos começam a dar-se conta de que podem conhecer um fim trágico e até de desaparecer como espécie, irrompe um medo ancestral que os leva a uma ética de sobrevivência. O pressuposto inconsciente é que o valor da vida está acima de qualquer outro valor cultural, religioso ou econômico.

Por fim, importa resgatar a ética da justiça para todos. A justiça é o direito mínimo que tributamos ao outro, de que possa continuar a existir e  dando-lhe o que lhe cabe como pessoa. Especialmente as instituições devem ser Justas e equitativas para evitar os privilégios e as exclusões sociais que tantas vítimas produzem, particularmente em nosso país, um dos mais desiguais, vale dizer, mais injustos do mundo. Daí se explica o ódio e as discriminações que dilaceram a sociedade, vindos não do povo mas daquelas elites endinheiradas que sempre vivem do privilégio e não aceitam que os pobres possam subir um degrau na escala social. Atualmente vivemos sob um regime de exceção, no qual tanto a Constituição e as leis são pisoteadas ou mediante o Lawfare (a interpretação distorcida da lei que o juiz pratica para prejudicar o acusado).

A justiça não vale apenas entre os humanos mas também para com a natureza e a Terra que são portadores de direitos e por isso devem ser incluídos em nosso conceito de democracia sócio-ecológica. 

Estes são alguns parâmetros mínimos para uma ética, válida para cada povo e para a humanidade, reunida na Casa Comum. Devemos incorporar uma ética da sobriedade compartida para lograr o que dizia Xi Jinping, chefe supremo da China “uma sociedade moderadamente abastecida”.Isto significa um ideal mínimo e alcançável. Caso contrário poderemos conhecer um armagedon social e ecológico.

 

Leonardo Boff  escreveu: “Como cuidar da Casa Comum,  Vozes 2018.