Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

O povo organizado, protagonista da nova sociedade

Edição nº 1634 - 03 de Agosto de 2018

         O Papa Francisco além de ser um líder religioso emerge também como um dos maiores líderes geopolíticos atuais. Ele tem um lado. Não reproduz um discurso equilistra, próprio dos pontífices passados. Pelo fato de ter claramente um lado, o dos pobres, das vítimas e da vida ameaçada, anuncia e denuncia. Denuncia um sistema que idolatra o dinheiro e se faz assassino dos pobres e depredador da natureza. Entende-se: é o sistema e a cultura do capital. Temos que ouvir suas palavras porque é de alguém que tem consciência dos riscos que pesam sobre toda a humanidade e a natureza.

Não se limita à denúncia. Anuncia como se viu indubitavelmente no dia 9 de julho de 2015, por ocasião de sua visita à Bolívia. Realizou-se o II Encontro Mundial dos Movimentos Sociais em Santa Cruz de la Sierra. Chamou a si os representantes dos movimentos para com eles, que sentem na própria pele as feridas da exploração, a fim de discutirem as causas de seus padecimentos. Nenhum dos papas anteriores teve esse ousadia. 

Muitos representantes brasileiros marcaram lá sua presença. O discurso é um verdadeiro roteiro para as lutas em direção de um tipo novo de civilização, já que a nossa está em crescente erosão e não possui internamente os meios de solução para os problemas ameaçadores que ela criou para si e para o nosso futuro. O discurso possui duas partes: na primeira estabelece as metas fundamentais que devem abranger a todos. São os famosos três Tês: Terra para morar e trabalhar nela; Trabalho para garantir o sustento das pessoas; Teto para abrigar as  pessoas porque não são  animais ao relento.

A segunda parte é programática e representa um desafio. Diz aos representantes dos movimentos sociais. Resumindo suas  palavras, afirma: não esperem nada de cima, dos gestores do sistema vigente, pois vem sempre mais do mesmo que perpetua e aprofunda a miséria. Sejam vocês mesmos os protagonistas de um novo estilo de sociedade, com um nova forma de produção orgânica, sintonizada com a natureza; com uma distribuição justa dos benefícios e com um consumo sóbrio; sejam os profetas do novo fundado na justiça social e na solidariedade. E dá três conselhos: façam com que a economia sirva à vida e não ao mercado; promovam a justiça social, base para a paz duradoura; e cuidem da Mãe Terra sem a qual nenhum projeto se torna possível.

Essas orientações do Papa Francisco nos iluminam no meio da tormenta de nossa pluricrise atual. O legado desta crise será seguramente um outro tipo de sociedade brasileira, onde as dezenas de movimentos sociais de homens e de mulheres possuirão um protagonismo determinante.

Será um novo tipo de cidadania que regenerará o Brasil. Só cidadãos ativos podem fundar uma sociedade democrático-participativa, sócio-ecológica, como sistema aberto e sempre perfectível. Por isso, o diálogo, a participação, a vivência da correção ética e a busca da transparência constituem suas virtudes maiores.

Fundamentalmente, podemos dizer: há no Brasil dois projetos antagônicos disputando a hegemonia: o projeto dos endinheirados, antigos e novos, articulados com as corporações transnacionais que querem um Brasil com população menor do que realmente é. Este Brasil, assim, acreditam eles, daria para gerenciá-lo, em seu benefício, sem maiores preocupações. Os restantes milhões que se lasquem pois sempre tiveram que se acostumar a viver e a sobreviver na necessidade.         

O outro projeto quer construir um Brasil para todos, democrático, pujante, soberano, ativo e altivo face às preces dos poderosos externos e internos, estes que querem recolonizar o Brasil e fazê-lo mero exportador de commodities.

Os dois golpes que conhecemos na fase republicana, o de 1964 e do 2016, foram tramados e dados em função da voracidade dos endinheirados que não possuem um projeto de nação, apenas para si, como forma de garantir seus privilégios. 

Os que deram o golpe em 2016 embarcaram nesse projeto contra o povo. Na verdade, eles não têm nada a oferecer para os milhões de brasileiros que estão às margens do desenvolvimento humano, senão mais empobrecimento e discriminação. 

Esta oligarquia de endinheirados, no entanto, não é portadora de esperança e, por isso, é condenada a viver sob permanente medo de que, um dia, esta situação possa se reverter e perder seus privilégios.

Eis a nossa esperança: de que o futuro acabe pertencendo aos humilhados e ofendidos de nossa história que, um dia - e ele chegará - herdarão as bondades que a Mãe Terra reservou para todos. Alegres, se sentarão juntos à mesa, na grande comensalidade dos libertos, gozando dos frutos de sua resistência, de sua indignação e de sua coragem de mudar. Então, começará uma nova história do Brasil, da qual foram os principais protagonistas, homens e mulheres e da qual nos podemos honrar.

 

Leonardo Boff é teólogo e filosofo e escreveu Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018.