Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

O peruano Gustavo Gutiérrez, pai da Teologia da Libertação, faz 90 anos (Parte 3)

Edição nº 1632 - 20 de Julho de 2018

Publicamos aqui esta homenagem, feita de muitas memórias de Frei Betto sobre Gustavo Gutiérrez, o pai da Teologia da Libertação. Unimo-nos às palavras de Frei Betto: Lboff

 

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Esta característica permitiu que ele trabalhasse no rascunho do famoso Documento de Medellín, aprovado pela Conferência Episcopal Latino-americana, em 1968 – um texto que se tornaria fundamental à prática e teoria da Igreja dos pobres na América Latina.

Certa ocasião, Gutiérrez chegou a Roma exatamente quando os bispos peruanos estavam discutindo os trabalhos dele com os mais altos dignitários da Cúria. Quem pode jurar que o texto final, mais favorável a ele que o rascunho original, não tenha sido redigido pela própria pena de Gutiérrez?

Discreto como um capuchinho, ele se movimenta no domínio político dos conflitos teológicos com toda a sutileza de um jesuíta. Embora sua expressão às vezes revele aquela angústia metafísica característica das pessoas para quem a linha estreita que separa a morte da vida é familiar, nunca entra em pânico, e sua aguda intuição é capaz de apresentar soluções imediatas a problemas complicados, como se tivesse meditado durante anos sobre uma questão que acabou de surgir. Consegue ficar sentado durante horas num banco de aeroporto, escrevendo um artigo ou escutando alguém, mordendo nervosamente o tempo todo um palito com seus dentes fortes, ligeiramente separados. Suas respostas são quase sempre ironicamente divertidas, como se estivesse armando uma adivinhação.

Ao ministrar aulas e conferências, segue um padrão rígido tão cuidadosamente montado que dá a impressão de ter ornamentado seu texto. Suas piadas conferem às palavras um sabor todo seu, porque é sempre capaz de manifestar aquela rara virtude que tanto o encanta: o humor. Seu senso de humor lhe permite manter certa distância crítica de qualquer fato. É dele a observação de que os políticos normalmente pensam apenas numa única intenção, quer dizer, na segunda.Não se permite ser traído pela emoção, porque sabe que nada de humano merece ser levado demasiado a sério.

Convivi com Gustavo Gutiérrez em Puebla, em janeiro e fevereiro de 1979, durante a Terceira Conferência Episcopal Latino-americana. Naquela ocasião, o nome dele, do mesmo modo que o de outros teólogos da libertação, havia sido excluído da lista de assessores oficiais. Não tinha acesso direto ao local de encontro dos bispos, mas muitos prelados vinham até ele em busca de ajuda, o que o obrigava a passar noites inteiras elaborando rascunhos e propostas.

Estávamos todos alojados precariamente em dois apartamentos sem mobília, que raramente tinham água e em cujos banheiros faltava luz. Sobrevivíamos com algum maná caído do céu, porque não tínhamos cozinha, e nos restaurantes da cidade seríamos presas fáceis da imprensa internacional, sempre em busca de um teólogo para decifrar a linguagem eclesiástica dos textos, ou para dar uma entrevista exclusiva que confirmasse a natureza rebelde ou herética da teologia da libertação…

Depois de driblar todos os correspondentes estrangeiros durante dias, na tarde do domingo, 4 de fevereiro de 1979, Gutiérrez aceitou a sugestão do Centro Mexicano de Comunicación Social (Cencos) de realizar uma coletiva de imprensa no hotel El Portal. Em seus comentários, ele enfatizou que a teologia da libertação não tinha planejado começar por uma reflexão sobre os pobres. Os próprios pobres, agentes da transformação histórica, iniciaram essa reflexão teológica. O objetivo da teologia da libertação é dar aos pobres o direito de pensar e se expressar teologicamente. Quanto mais os jornalistas o pressionavam para deixar escapar algo que pudesse soar como heresia, tanto mais Gutiérrez se mostrava fiel aos pobres e à Igreja. Ele é mestre em reconciliar (conciliando) polos aparentemente opostos, apresentando sínteses que nos incentivam a reinterpretar a tradição e o mundo à nossa volta.

Encontrei-me com ele em diferentes ocasiões em seu escritório – a “torre” de Rimac, bairro pobre de Lima. Decididamente era um dos escritórios mais desordenados que jamais vi. Espalhados e misturados no chão havia latas de Coca-Cola e livros do cardeal Ratzinger. Também garrafas em cima de documentos papais, fios elétricos desgarrados perambulavam entre papéis empoeirados. Não havia o menor indício de que um espanador tivesse estado lá desde a chegada de Francisco Pizarro ao Peru.

Apesar disso, aquela confusão tinha lógica para ele. Sabia exatamente onde encontrar cada coisa. E em meio àquele monte de papéis ele devorava os livros que recebia. Quando sentia fome, comia alguma refeição comum indefinida, junto com desempregados e subempregados.

Gutiérrez sempre preferiu ler a escrever. Tem seu próprio método de leitura dinâmica, como se uma antena lhe indicasse a qualidade do conteúdo de uma obra. Escrever, para ele, é um ato doloroso. E quando escreve, admitir que alcançou a versão final é um sacrifício. Sempre considera um texto provisório, a ser revisto e melhorado. Por isso, quase todas as suas obras começaram como palestras mimeografadas. É muito provável que seja o autor de mais obras não publicadas, conhecidas só por um pequeno círculo de leitores, do que publicadas. Em geral, sequer assina os textos mimeografados, que incluem uma excelente introdução às ideias de Marx e Engels e de seu relacionamento com o cristianismo.

Em janeiro de 1985, na véspera da visita do Papa João Paulo II a Lima, eu o encontrei na “torre” de Rimac, escrevendo uma série de artigos ligados a esse importante evento eclesial. Enquanto conversávamos, Gutiérrez tentava desembaraçar um longo fio de telefone, que mais parecia uma bola de lã na boca de um gato brincalhão. Ele sempre mantém as mãos ocupadas quando está nervoso, seja torcendo um elástico ou brincando com uma caneta esferográfica. E naquele momento tinha razões mais que suficientes para estar tenso, pois o cardeal Ratzinger anunciara, para setembro, uma resposta à defesa que Leonardo Boff havia feito de seu livro Igreja, Carisma e Poder, contra as críticas de Roma. O Natal tinha passado e a Cúria ainda permanecia em silêncio. A segunda “Instrução” sobre a teologia da libertação, baseada numa consulta aos bispos da América Latina, prometida para novembro ou dezembro, também não tinha aparecido.

Talvez tivesse sido decidido que o papa deveria fazer uma declaração mais oficial sobre a teologia da libertação no local. Nada poderia ser mais oportuno que um pronunciamento durante uma visita à terra natal do pai da teologia da libertação. Gutiérrez temia que o papa dissesse algo que pudesse ser interpretado como uma condenação à sua teologia. Seria desastroso. Apesar disso, estava pronto a deixar a “torre” que o protegia do assédio da imprensa e aparecer no encontro do papa com sacerdotes e leigos na praça. Mais uma vez parecia certo de que, devido às suas raízes indígenas, como pessoa capaz de caminhar à noite na floresta sem despertar a natureza de seu sono, sua presença seria discreta como a garoa que cobre os telhados de Lima antes do amanhecer.