Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

O peruano Gustavo Gutiérrez, pai da Teologia da Libertação, faz 90 anos (Parte 2)

Edição nº 1631 - 13 de Julho de 2018

Publicamos aqui esta homenagem, feita de muitas memórias de Frei Betto sobre Gustavo Gutiérrez, o pai da Teologia da Libertação. Unimo-nos às palavras de Frei Betto: Lboff

 

Uma teologia “ilegítima”

Na América Latina, o fato de ser “filho ilegítimo” não afeta necessariamente a imagem social de alguém. Somos todos filhos e filhas de relacionamentos entre espanhóis e ameríndios, portugueses e caboclos, brancos e negros, mestiços e mulatos. Nosso racismo é só para efeito social: ele se dilui no calor dos trópicos, em que sexualidade é poder e festa, barganha e submissão, fantasia e transgressão. Nesta parte do mundo, a família é um conceito tão recente quanto a sua constituição. Para parafrasear Santo Tomás de Aquino, aqui a vida extrapola o pensamento. Nem mesmo a teologia escapa da árvore genealógica de raízes incertas e galhos torcidos. Interrogar a teologia da libertação sobre seus ancestrais legítimos é como perguntar a um indígena mexicano ou a um plantador de café colombiano sobre a verdade histórica por detrás de sua tradição familiar.

Gustavo Gutiérrez pode, com razão, ser considerado o pai da teologia da libertação, pois foi o primeiro a publicar um livro com esse título, em 1971, pela espanhola Ediciones Sígueme. Mas ele mesmo não nega a importância, para seu trabalho, da visita que fez ao Brasil em 1969, quando teve contato com nossas Comunidades Eclesiais de Base e experimentou, de perto, o drama do assassinato – ainda hoje impune – do assessor da juventude de dom Helder Camara, o Pe. Henrique Pereira Neto, estrangulado e baleado pela ditadura militar brasileira em Recife, em 26 de maio de 1969. 

Gutiérrez dedicou sua “Teologia da libertação” a ele e ao romancista peruano José María Arguedas. Apesar disso, não é possível negar as raízes europeias provenientes do humanismo integral de Jacques Maritain, do personalismo engajado de Mounier, do evolucionismo progressivo de Teilhard de Chardin, da dogmática social de De Lubac, da teologia do laicado de Congar, da teologia do desenvolvimento de Lebret, da teologia da revolução de Comblin, ou da teologia política de Metz.

O Concílio Vaticano II incentivou as condições para que fosse cortado o cordão umbilical que mantinha a teologia da América Latina dependente do útero da mãe Europa. Ao se iniciar a década de 1960, a revolução cubana, o fracasso da Aliança para o Progresso, a crise do modelo desenvolvimentista e o crescimento de movimentos de esquerda não ligados aos partidos comunistas tradicionais, foram alguns dos fatores que levaram os teólogos latino-americanos a enraizar o pensamento no solo que pisavam. Não que fosse uma questão de procurar por categorias que permitissem uma reinterpretação de fatos sociais e políticos. O motor da teoria era a prática das comunidades populares cristãs, enraizada na luta; conforme transformavam o mundo, também alteravam o modelo da Igreja. Mudança social e eclesiogênesis estão, em última instância, ligadas.

A construção de um projeto político alternativo não deixa a Igreja intocada, como se fosse uma comunidade de anjos pairando acima das contradições que atravessam a trama da sociedade. O elemento novo era a consciência, alcançada na vida em comum das Comunidades Eclesiais de Base, de que a Igreja não é apenas o papa ou os bispos, mas o povo de Deus em marcha na história. E a presença deste povo crente e oprimido nos movimentos sociais da América Latina marcou a fé com um caráter crítico que fez nascer a teologia da libertação.


Um teólogo indígena

Na sétima conferência internacional da Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), em Oaxtepec, México, em dezembro de 1986, o teólogo negro norte-americano James Cone se queixou que a teologia da libertação latino-americana era demasiado branca. O estranho é que a seu lado estava Gustavo Gutiérrez, de aparência tipicamente indígena: pele marrom, rosto redondo, baixo e atarracado, com olhos ligeiramente amendoados, revelando sua ascendência quéchua. Em casa, seu pai falava esse idioma do antigo império inca. Porém, mais que a língua e a aparência, Gutiérrez herdou o estilo dos ameríndios andinos. E é isso que surpreende qualquer pessoa que o conheça: ele combina – não sem alguns conflitos – a mente dotada de inteligência rápida e racional, magisterial, que se expressa em uma linguagem construída como as partes de um instrumento de precisão, e uma sensibilidade que desarma todos os modelos da moderna racionalidade.

Nele coexistem o intelectual treinado em Louvain – onde foi colega de Camilo Torres e defendeu uma tese baseada em Freud – e o ameríndio do altiplano peruano. É isto que lhe permite entrar numa sala de aula sem ser notado – como que deslizando sobre seus próprios pés – ou visitar seu amigo Miguel d'Escoto sem que ninguém mais perceba sua presença em Manágua. É como se ele pudesse viajar, não apenas nas estradas acessíveis a viajantes urbanizados, mas também nas trilhas e picadas que só os habitantes da selva conhecem. Esse dom ancestral lhe permite dominar uma nova língua, um novo campo de conhecimento, ou passar através de Nova York, Paris ou Bonn, como um ameríndio se esgueirando entre árvores e folhas, observando sem ser observado, rápido como u m pássaro e discreto como uma lhama.