Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Está confuso mas eu sonho

Edição nº 1633 - 27 de Julho de 2018

“Faz escuro mas eu canto, porque a manhã vai chegar”, proclamou o poeta Thiago de Mello na época sombria da ditadura civil-militar de 1964.”

Está confuso mas eu sonho”, digo eu, nestes tempos não menos sombrios. O sonho ninguém pode prender. Ele antecipa o futuro e anuncia o amanhã.

Ninguém pode dizer o que vai ser deste país após o golpe parlamentar-jurídico-mediático de 2016. Faz escuro e tudo está confuso mas eu sonho. Este sonho está rodando em minha cabeça há muitos dias e resolvi expressá-lo para alimentar a nossa inarredável esperança.

Sonho ver um Brasil construído de baixo para cima e de dentro para fora, forjando uma democracia popular, participativa e sócio-ecológica, reconhecendo como novos cidadãos com direitos, a natureza e a Mãe Terra.

Sonho ver o povo organizado em redes de movimentos, povo cidadão, com competência social de gerar as suas próprias oportunidades e moldar o seu próprio destino, livre da dependência dos poderosos e resgatando a própria auto-estima.

Sonho ver a utopia mínima plenamente realizada de comer pelo menos três vezes ao dia, de morar com decência, de ter frequentado a escola por oito anos, de receber por seu trabalho um salário que satisfaça as necessidades essenciais de toda a família, de ter acesso à saúde básica e depois de ter labutado por toda uma vida, ganhar uma aposentadora digna para enfrentar, serenamente os achaques da velhice.

Sonho ver celebrado o casamento entre o saber popular, de experiências feito, com o saber acadêmico, de estudos feitos, ambos construindo um  país para todos, sem excessos e também sem carências.

Sonho ver o povo celebrando suas festas com muita comida e alegria, dançando o seu São João, o seu Bumba-meu-Boi, seu samba, seu frevo e seu esplêndido carnaval, expressão de uma sociedade sofrida, mas que se encontrou na 'fraternura' e na alegre celebração da vida.

Sonho ver aqueles que foram condenados a sempre perder, sentir-se vitoriosos, porque o sofrimento não foi em vão e os amadureceu para, com outros, construírem um Brasil diferente, uno e diverso, hospitaleiro e alegre.

Sonho contar com políticos que se abaixam para estar à altura dos olhos do outro, despojados de arrogância, conscientes de representar as demandas populares, fazendo da política cuidado diligente da coisa pública.

Sonho andar por aí de noite sem medo de ser assaltado ou vítima de balas perdidas podendo disfrutar da liberdade de poder falar e criticar nas redes sociais  sem logo ser  ofendido  e  difamado.

Sonho contemplar nossas florestas verdes, nossos imensos rios regenerados, nossas soberbas paisagens e a biodiversidade preservada, renovando o pacto natural com a Mãe Terra que tudo nos dá, e reconhecendo seus direitos e por isso tratá-la com veneração e cuidado.

Sonho ver o povo místico e religioso, venerando a Deus como gosta, sentindo-se acompanhado por espíritos bons, por forças portadoras da energia cósmica do axé, dando um caráter mágico à realidade com a convicção de que, no fim, por causa de Deus-Pai-e-Mãe de infinita bondade e misericórdia, tudo vai dar certo.

Sonho que este sonho não seja apenas um sonho, mas uma realidade ridente e factível, fruto maduro de tantos séculos de resistência, de luta, de lágrimas, de suor  e de sangue.

Só então, só então, podemos rir e cantar, cantar e dançar, dançar e celebrar um Brasil novo, o maior país latino do mundo, uma das províncias mais ricas e belas da Terra que a evolução ou Deus nos entregaram.

Assim o quer o brasileiro e nos ajude Deus.

 

Leonardo Boff é escritor e publicou: Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência (Vozes) 2018.