Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

No Cristianismo encarnado na cultura Gurarani, o bispo seria um pobre e o Papa um mendigo

Edição nº 1601 - 15 de Dezembro de 2017

Há uma crise generalizada acerca do poder e de seu exercício, una real crise sistêmica, vale dizer, a percepção de que a forma como entendemos o poder e seu exercício em todos os âmbitos da realidade, não nos faz melhores. Vivemos quase sempre sob formas degeneradas, burocráticas, patriarcais, autoritárias senão ditatoriais. Max Weber, um dos grandes teóricos do poder, deu-lhe uma definição que tomou como referência seu lado patológico e não seu lado sadio. Para ele, poder é fazer com que o outro faça aquilo que eu quero.

Por que não entender o poder como expressão jurídica da soberania popular, poder compartido e servicial? O ético deste poder consiste em reforçar o poder do outro para que ninguém se sinta sem poder mas participante nas decisões que afetam a todos.

Em tempos de crise como o nosso, convém revisitar outras formas de exercício de poder que nos ajudam a superar o pensamento único acerca do poder. Penso aqui na formas como os Guarani entendiam o poder e seu portador, o chefe da tribo. Sabemos, historicamente, que os Tupi-guarani, por volta de 1.100 anos antes da chegada dos europeus, constituíram um vasto império na selva que ia do norte nos contrafortes andinos até as bacias do Paraguai e Paraná ao sul. Não deixavam monumentos mas terras trabalhadas e muitos caminhos, até hoje identificáveis, que ligavam outras tribos para negócios (ver o livro de  Evaristo E.de Miranda, Quando o Amazonas corria pra o Pacífico, Vozes 2007, p.91-94). Portanto, era um formidável império.

Um pesquisador francês Louis Necker nos traz um relato impressionante acerca do tema do poder entre os guaranis (Indios guranies y chamanes franciscanos: las primeras reducciones del Paraguay (1580-1800, Asunción 1990). Permito-me transcrever alguns tópicos ilustrativos de um outro tipo de exercício de poder.

“O chefe não tinha poder de coerção. Seus “súditos” aceitavam sua autoridade e sua preeminência só na medida das contraprestações que recebiam dele. O chefe dirigia os empreendimentos comunais…. Tinha um privilégio: a poligamia. Mas por sua vez tinha obrigações bem precisas cuja não execução podia significar-lhe o abandono de seus súditos: conduzir habilmente a política exterior do grupo, tomar decisões judiciosas em matéria econômica, repartir com justiça entre as famílias nucleares os lotes de terreno limpados em mutirão, manter a paz no grupo e muitas vezes ter qualidades de chamã, úteis ao grupo, como o poder de curar ou o controle das forças sobrenaturais. Era muito importante que o chefe fosse eloquente. E sobretudo devia ser generoso. Como o notou   Levi-Strauss, nos povos do tipo dos Guarani, “a generosidade é o atributo essencial do poder”. Para conservá-lo, o chefe devia sem cessar fazer presentes de bens, de serviços, de festas...

Na selva tropical, este tipo de obrigação pode ser tão pesada que o chefe se via obrigado a trabalhar muito mais que os outros e a renunciar quase a toda posse para si mesmo. É o papel do chefe… dar tudo o que se lhe pedissem: em algumas tribos se pode reconhecer sempre o chefe na pessoa que possui menos que os outros e leva os ornamentos mais miseráveis. O resto se lhe foi em presentes”.

O Cristianismo não escolhe a cultura na qual vai se encarnar. Encarna-se naquela que encontra. Assim fez com a cultura do judaísmo da diáspora (judeus que viviam fora da Palestina), com o judaísmo palestinense, com a cultura grega da Ásia Menor e com a cultura imperial romana. Desta encarnação nos veio o atual cristianismo com suas positividades e limitações próprias desta cultura. Especialmente a Igreja romano-católica assumiu o estilo de poder, não pregado por Jesus, mas dos Imperadores, poder absoluto e carregado de símbolos que subsistiram nos Papas até o advento do Papa Francisco que se libertou deles, renunciando especialmente da famosa “mozetta”, aquela capinha nos ombros carregada de ouro e prata, símbolo maior do poder do imperador e a vida em palácios. O Papa Francisco seguiu os passos do poverello de Assis e foi morar onde vão se hospedar os bispos e padres que chegam a Roma.

Façamos um exercício de imaginação. Que tal se o cristianismo, ao invés de lançar raízes na cultura mediterrânea greco-latina e depois germânica, tivesse assumido a forma Guarani, nas vastas extensões amazônicas que dominavam, de exercício de poder?

Então encontraríamos os padres, paupérrimos, os bispos, miseráveis e o papa, um verdadeiro mendigo. Trabalhariam incansavelmente a serviço dos fiéis. Sua marca registrada seria a generosidade sem limites.

E dariam um testemunho espontâneo e profundamente inspirador do sonho de Jesus. Ele pediu semelhante exercício do poder, como puro serviço: “Sabeis que entre as nações quem tem poder manda e os grandes dominam sobre elas; assim não há de ser entre vós; ao contrário, se alguém de vós quiser ser grande, seja vosso servidor; pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir” (Mc 10, 42 ss).

Que esse ensinamento seja permanente auto-crítica a todo poder, também daquele ecclesiástico, mas principalmente seja inspirador de uma forma não dominadora do poder.

 

Leonardo Boff é articulista do JBon line, teólogo e escreveu Igreja: carisma e poder, Vozes 1982.