Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Gabriella, uma sacramentana no arquipélago dos Açores

Edição nº 1777 - 07 de Maio de 2021

A entrevistada desta edição, nos seus belos 22 anos, corajosa, empoderada, uma trabalhadora da vida desde os 15 anos, é Gabriella Corrêa Domingos, que faz questão de ser sacramentana, conta um pouco de sua história e como está vivendo e estudando na Europa. Diz que não gosta da expressão 'de mala e cuia', por isso foi tudo muito bem planejado até chegar à Holanda. Matogrossense de Corumbá, chegou a Sacramento aos seis anos, como filha do coração de nossa querida Rose Doida, que diz, com todas as letras que sua “filhinha” é sacramentana. Hoje está vivendo no paradisíaco arquipélago dos Açores e feliz da vida por estar realizando um de seus sonhos, o curso superior em Enfermagem. Veja a seguir a entrevista online que concedeu ao jornalista Walmor js. 

 

ET - Como foi esse tempo de criança e início de adolescência em Sacramento?

Gabriella - De muita animação. Nasci em Corumbá, mas me considero mineira, pois foi onde passei minha infância e parte da minha adolescência, em Sacramento. Sempre fui uma criança muito ativa, estava sempre envolvida em atividades escolares e esportivas nos bairros. Minha mãe também não ficava atrás no quesito animação, então eu sempre a acompanhava pelas folias de reis, festas de 1º de maio, carnavais, nos jogos de futebol do meu irmão, entre outros eventos.

 

ET - Com essa animação toda e o apoio da Rose você deve ter sido um furacão na escola... Onde estudou?

Gabriella – Sim, eu tinha muita energia, eu era uma tagarela que 'falava pelos cotovelos'. Do 1º ao 3º ano, estudei na Escola Eurípedes Barsanulfo, onde fiz trabalho voluntário no berçário, uma escola que, desde aquela época, demonstrava um compromisso de aprendizado. Me lembro da minha primeira professora, que se chamava Karina. Depois, estudei na EE Barão da Rifaina e na EE Coronel José Afonso de Almeida e várias outras escolas no Estado de São Paulo. Em relação aos colegas, é difícil citar nomes, sempre tive muitos, em diferentes anos e escolas.

 

ET - Rose era durona com você na escola, acompanhava seus estudos, suas estripulias?

Gabriella - Sim, claro, não só ela, minhas irmãs também. Minha infância não foi só marcada por festas, minha mãe e minhas irmãs, Camila e Taína acompanhavam meu desempenho escolar. Desde cedo me lembro de ganhar livros de presente e ser incentivada a participar das atividades na escola. Nas apresentações, então, eu não precisava de muito incentivo, não, considerando minha extrovertida personalidade. Quanto às minhas estripulias, meus irmãos Neto e Vinícius garantiram que eu permanecesse 'nos trilhos', até porque também tive minha fase rebelde (risos).

 

ET – Depois do ensino fundamental (9º ano), como foi sua trajetória escolar?

Gabriella - Fiz o curso Técnico de Enfermagem, em Campinas, aprendi inglês sozinha, fui fazer um intercâmbio de um ano na Holanda onde aprendi Holandês. No final do intercâmbio, tirei meu visto de estudante para Portugal e migrei para a Região Autônoma dos Açores, em Portugal, um arquipélago longe do continente, para cursar Enfermagem. Entrei com a nota do ENEM, após ter a pontuação necessária, e outros documentos.

 

ET – Como a Região Autônoma dos Açores é formada por nove ilhas, em qual delas você mora, a cidade, habitantes... dizem que é uma região paradisíaca. 

Gabriella – Eu moro na Ilha Terceira, na cidade de Angra do Heroísmo, com cerca de 56.000 habitantes. É uma ilha muito linda e sempre me surpreendo com as vistas desde o luar refletido no mar, por do sol ou amanhecer, além de ser lindo, também é um patrimônio histórico da UNESCO, por isso a natureza aqui é muito valorizada, principalmente pelos habitantes. 

 

ET – Se já dominava o inglês, aprendeu holandês, por que não permaneceu na Holanda para cursar Enfermagem?

Gabriella - Me mudei para Holanda para fazer intercâmbio, mas meu objetivo já era cursar Enfermagem, porém quando cheguei ao país , percebi que o sistema de ensino não era como eu queria, tendo em vista que eles focam em cursos específicos como enfermagem no cuidado com os idosos ou crianças e, a nível de bacharelado é centrado em pesquisas. Vivi meu intercâmbio em três cidades, Leiden, Amersfoort e Heemskerk e que foi muito bem aproveitado, pois aperfeiçoei meu inglês e aprendi holandês. 

 

ET - Como nasceu a ideia de estudar e trabalhar no exterior e o porquê da opção por Portugal? 

Gabriella – Então, como eu disse, logo que finalizei o intercâmbio, tirei meu visto de estudante e migrei para Portugal. A primeira opção seria Espanha mas optei pelo curso de Enfermagem em Portugal, por saber que o curso é referência na Europa e bem mais em conta, tirando que eles usam tanto, mas tanto material brasileiro (vídeos, artigos, livros, documentos, etc) que me sinto estudando no Brasil. 

 

ET - Foi uma opção racional... 

Gabriella - Sim, partindo do princípio que sou minha responsável financeira, além de estudar, preciso trabalhar para custear meus gastos. Também pelo fato de ser brasileira. Como o Brasil faz parte da PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), o governo português oferece bons descontos aos estudantes egressos desses países. Na verdade, minha primeira opção era a Espanha, mas por causa do lockdown, não pude fazer o vestibular lá e, como não queria perder um ano letivo, fui para Portugal.

 

ET – Você já chegou em Portugal como enfermeira? 

Gabriella - Não, pois não sou enfermeira. Tenho diploma de Técnico de Enfermagem, cursado em Campinas. Agora que estou cursando licenciatura em Enfermagem, nos Açores. Aqui não consigo atuar como Técnica de Enfermagem, pois não existe essa função no país. 

 

ET - Ao decidir-se primeiro pela Holanda, depois Portugal, tinha um endereço onde ficar, onde trabalhar, estudar, ou foi, assim, de 'mala e cuia', como costumamos dizer no Brasil? 

Gabriella - Na verdade, não gosto da ideia de 'mala e cuia', por não gostar também de surpresas. Eu fui para Holanda como Au Pair, um visto específico de intercambista, que utiliza uma agência para intermediar esse processo, como por exemplo, a Au Pair Netherlands. Após achar, com a ajuda da agência, a família anfitriã, você faz o restante do processo no consulado como qualquer visto. Esse programa existe em diversos países, Estados Unidos, França, Bélgica, entre outros, e como eu queria ficar na Europa, decidi pela Holanda, por gosto pessoal.

 

ET - Para Portugal, com o visto de estudante foi mais fácil...

Gabriella - Sim, era um documento a mais, mas nem por isso fui de 'mala e cuia', me organizei antes como podia. Da Holanda já havia alugado alojamento, já havia agendado uma entrevista, onde hoje eu trabalho, já estava matriculada na universidade e já pude ingressar no curso, cumprindo todos os procedimentos, por causa da Covid-19. Enfim, comecei do zero, pois não tinha família ou conhecidos para onde iria me migrar, por isso,  tudo previamente acertado. 

 

ET - Trabalhou em outros empregos antes de chegar à Enfermagem?

Gabriella - Comecei cedo a trabalhar. Aos 15 e 16 anos já trabalhava como menor aprendiz com contrato de trabalho assinado. Na área da Saúde, fiz estágios obrigatórios em hospitais em Campinas (SP), por conta do curso de Técnico em Enfermagem, trabalhei também na EPTV, em Campinas, além de outras empresas. Já agora, nos Açores, trabalho com registro em carteira como cuidadora de idosos.

 

ET - Além de suas atividades profissionais, como é a vida da Gabriella nos Açores?

Gabriella - Fiz muitos amigos aqui e costumo sair com eles, estudar, desfrutar da natureza, considerando que moro em um patrimônio histórico da UNESCO, e me divertir como posso. Por quase não ter casos de Covid, nos Açores, nós temos mais liberdade, mas mesmo assim, há restrições. Os estabelecimentos têm horário pra fechar, que costuma ser à meia-noite. Diversão em baladas, por enquanto, não, pois ainda não voltaram a funcionar. Com a situação da Covid-19, tudo que é relacionado a lazer eu faço, porém, seguindo as restrições. 

 

ET – Viagens...

Gabriella - Apesar de eu gostar muito, elas não são permitidas, no momento, principalmente porque trabalho com idosos. Antes da pandemia, além da Holanda, onde permaneci um ano, pude visitar a França, Bélgica, Malta e Alemanha. Agora, é só esperar minha segunda dose da vacina para pegar minha carry on (mala pequena) e sair explorando outros países. 

 

ET - Na qualidade de imigrante brasileira, estudante e trabalho fixo, você já tem cidadania/nacionalidade portuguesa, com passaporte e direitos garantidos como aposentadoria, plano de saúde, seguridade social? 

 

Gabriella - Os brasileiros têm direito a seguro de saúde de graça em Portugal e o sistema de saúde aqui é público, totalmente gratuito para toda a população. Tirando isso, não possuo passaporte europeu, só o meu cartão de residência em Portugal. Aqui também existe a Seguridade Social, é como um INSS, que no primeiro ano de atividade/contrato de trabalho é isento, depois é cobrada uma taxa trimestral, seja de portugueses ou residentes. 

 

ET - Como foi a fase de adaptação em um país estrangeiro: idioma, costumes, hábitos, alimentação, enfim, muitas novidade e coisas diferentes, sem falar da saudade... Foi difícil esse início, Gabi?

Gabriella - Em relação ao idioma, na verdade, nós brasileiros não temos tanto contato com o português de Portugal, diferente deles que assistem a muitas novelas brasileiras, escutam músicas, entre outras coisas do nosso país. Como moro em uma região autônoma de Portugal, o sotaque deles é muito forte e diferente com o que estamos acostumados (parece uma mistura de francês com inglês). No começo eu não entendia nada, até preferia falar inglês, mas com o tempo consegui me acostumar, por isso, no início foi, sim, um pouquinho difícil.

 

ET - Já passou por alguma situação constrangedora, por conta de certas palavras ou expressões que têm significado diferente no Brasil ou até mesmo desconhecidas? 

Gabriella - Uma vez um professor entrou na sala e disse alguma coisa para a turma, eu respondi: 'Bom dia, meu nome é Gabriella'. Meus amigos me olharam e perguntaram o que eu estava falando. Eu respondi que tinha entendido o professor dizer, 'Bom dia', ao se apresentar. Mas, na verdade, ele tinha dito que 'o computador não estava funcionando, por isso ele iria chamar o Hugo da informática' (risos). 

 

ET – É, tão igual quanto 'confundir abacaxi com calça rasgada no joelho...' (risos) Desculpe, uma expressão jocosa. Mas fale um pouquinho dos hábitos e costumes portugueses que você ficou conhecendo, na culinária, na relação de amizade, na religiosidade, na política...

Gabriella - Portugal tem uma cultura muito rica, que é característica de cada região. É maioritariamente católico, onde pode se ver que, muito da cultura e festas, circulam em torno dessa religiosidade. Em Angra do Heroísmo, especificamente, a região é conhecida pelas touradas de rua, quando soltam os touros pela cidade e ficam correndo deles. Também pelas festas “sanjoaninas”, com desfile da rainha das sanjoaninas, desfile das marchas, touradas, 'tascas', comidas típicas e concertos. Como o nome indica, elas ocorrem entre os meses de junho e julho e não há um dia certo. São dez dias seguidos de festas em honra a São João. 

Também existe a Festa do Espírito Santo, com duração de cinco a seis semanas. Cada semana, uma pessoa, sorteada no ano anterior, recebe os convidados para a reza do terço na sua casa durante a semana. Aos domingos, eles realizam convívios com toda as pessoas da 'freguesia' (bairro) com farta comida, como o pão do Espírito Santo, sopa do Espírito Santo, alcatra e vinho. No primeiro domingo de festa há uma procissão encabeçada pela bandeira do Espirito Santo. Nas semanas seguintes repetem-se as visitas às casas das pessoas sorteadas ali e se come muito. No último domingo dessas cinco, seis semanas, é celebrada a Missa do Espírito Santo. É uma festa muito importante aqui, tudo em honra do Espírito Santo. Há ainda outras animadas festas como a do Carnaval, realizado na Rua de São João, no centro da cidade, as sátiras da atualidade e bailinhos, tudo no mês fevereiro, durante os dias de carnaval.  

 

ET – Vamos completar com o relacionamento da Gabriella com os amigos, amigas portugueses, costumes peculiares do país e a culinária. Já aprendeu a tomar vinho e comer bacalhau com os portugueses? 

Gabriella – Sim, fiz amizades com portugueses, mas acredito que seja mais fácil fazer amizades com outras nacionalidades, considerando que eles não tem um 'pré-conceito' tão forte como têm os portugueses com os brasileiros. A culinária é parecida com a do Brasil, no âmbito das guarnições, mas eles consomem uma quantidade de frutos do mar e peixes muito superior a nós, principalmente o bacalhau. As queixadinhas são tudo de bom. Porém, as cervejas são poucas, não tem tanta variedade como na Holanda, agora, quem vem a Portugal não pode deixar de tomar um bom vinho do Porto. O vinho aqui é bem barato, por isso nas festas universitárias é bem comum você ver os jovens com duas garrafas de vinho, tomando de “penálti”, que quer dizer, em um gole só. 

 

ET – Falando de política, após a Revolução dos Cravos, em 1974, o país derrubou o golpe militar instituído pelo ditador Salazar e passou a ser governado pelo Partido Socialista... Como vai a política do país? 

Gabriella - Sei que, a partir de 25 de Abril de 1974, partidos liberais e de esquerda derrubaram o ditador Salazar por um governo democrático. Mas é um pouco mais complexo do que parece e eu não tenho tanta propriedade no assunto. Nem eles sabem explicar muito bem (risos). Sei que o presidente é eleito pelo povo e ele escolhe um Primeiro Ministro que manda mais do que ele, que foi eleito pelo povo. 

 

ET – Passei por Lisboa em 1975, finalzinho da Revolução dos Cravos. Lisboa ainda toda pichada por conta das manifestações. Naquela época, percebi o carinho do povo para com os brasileiros. Continua assim?  Emendando, e Bolsonaro para os portugueses? 

Gabriella - Acredito que cada um tem sua experiência. Eu, infelizmente vivi muita xenofobia por ser brasileira, coisa que nunca passei em outros países. Sinto até uma certa perseguição aqui: já tive que escutar que não sabiam se eu seria contratada por ser brasileira; escutei que todo brasileiro era favelado; que fiz macumba para estar com alguém, entre outras coisas. Sem sombra de dúvidas, não imagino como deve ser quem mora em regiões com mercado de trabalho e outros convívios mais disputados. 

 

ET - Sobre nosso presidente...

Gabriella - A eleição de Bolsonaro e o modo como vem conduzindo a pandemia está tendo grande impacto a nível internacional. Eu já morava na Holanda quando ele foi eleito. E quando souberam que eu era brasileira, me questionavam muito. Eu precisava explicar que não votei nele e que nem todo brasileiro era ignorante e burro como ele. O que, claro, não era fácil afirmar, considerando que ele foi eleito por mais de 50 milhões de brasileiros. E, no meu ponto de vista, não foi uma ação humana e inteligente das pessoas que o elegeram. Por isso, sinto muito pesar toda vez que falo que sou brasileira.   

 

ET - Falando em pandemia, ninguém melhor do que você, graduanda em curso de Enfermagem, para falar sobre essa terrível doença, a Covid-19 que abate sobre o mundo. Como está Portugal, sua cidade, em relação à vacina? Quantas pessoas morreram? A fase mais difícil já passou? 

Gabriella – Portugal saiu do estado de emergência a semana passada, as escolas e universidades estão começando a abrir aos poucos, mas ainda está tudo muito caótico. Eu moro na Ilha Terceira, onde temos apenas um caso confirmado de Covid. As restrições e fiscalizações são muito severas.  Para entrar nos Açores você precisa apresentar um teste negativo, mesmo assim é obrigado a permanecer seis dias em isolamento, quando novamente repete o teste. Depois de mais 12 dias isolado, a pessoa faz ainda outro teste. É lei, todos os que entram na Região se submetem a esse isolamento profilático. 

 

ET – Em Portugal...

Gabriella - Muitas pessoas morreram em Portugal continental, cerca de mais de 16.000 mortos, mas na Região Autônoma dos Açores, onde moro, um arquipélago composto por nove ilhas, até o momento, totalizaram 31 mortos desde o início da pandemia, em 2020, o que é resultado de muito cuidado e conscientização das pessoas daqui e do governo, que sempre impõe medidas responsáveis. A vacinação está muito organizada na região autônoma dos Açores, tem ilha que já vacinou todos os habitantes, são três  grupos de vacinação e estamos no segundo. Eu já recebi a primeira dose pois sou cuidadora de idosos e pertenço ao segundo grupo. 

 

ET - Pra terminar, a Gabriella já encontrou um português para selar definitivamente essa experiência transcultural com um happy end? Faz parte de algum grupo de whatsapp, coletivo formado por brasileiros imigrantes ou intercambistas?

Gabriella – Pra selar, definitivamente, um intercâmbio, ainda não (risos). Tenho namorado. Sei que existem muitos brasileiros/as aqui, mas eu, particularmente, só conheço uma e somos mais colegas do que amigas. Meu círculo de amizade aqui é mais com americanos e portugueses. Não conheço tantos brasileiros para formar um coletivo (risos). 

 

ET - Tem alguém no Brasil, mais especificamente em Sacramento, que sente uma saudade imensa 'de ocê'. Do que você sente mais saudade de seu País e de Sacramento?

Gabriella -  Da minha mãezinha, Rose, da minha família, amigos, comida e das festas (principalmente do carnaval de Sacra). Um carinhoso abraço e o desejo de muitas felicidades a todos!