Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

De pai pra filho, uma profissão que vem desde a Babilônia

Edição nº 1722 - 10 de abril de 2020

Se você buscar no dicionário o significado de 'calceteiro' vai encontrar: “operário que calça ruas com pedras justapostas”, ou ainda, “trabalhador que calça ruas e outros caminhos com pedras ou paralelepípedos, ou que reveste calçadas com as chamadas pedras portuguesas”. A calcetaria, que se diz a profissão do calceteiro, hoje virou trabalho artístico exercido por mestres, geralmente de famílias humildes, cujo legado teima em não desaparecer pelos cuidados do pai ao transmitir a arte para os filhos. Vem assim desde tempos imemoriais, de pai para filho, quase concomitante com o asfalto. 

Para quem pensa que o asfalto é coisa da modernidade, engana-se.  Babilônia, Cidade dos Deuses, nascida no oriente médio há mais de mil anos a.C., já no século VI daquela era tinha ruas pavimentadas com asfalto. O mesmo asfalto quente de piche que impermeabiliza a rua e esquenta a cidade. Não tem nada de ecológico o revestimento asfáltico. Ao contrário, o paralelepípedo deixa a água pluvial infiltrar-se nas gretas, abastece o lençol freático, ameniza o clima e evita as enchentes que causam inúmeros danos. 

Nos anos 30, o calçamento com paralelepípedo chegou a Sacramento. O então prefeito Juca Ribeiro trouxe o calceteiro Abel, de Pará de Minas, para calçar as primeiras ruas da cidade, mas principalmente, incumbido de transmitir aquela arte a trabalhadores da cidade. Mas esta é outra história... 

Até que, a partir dos anos 70, o asfalto começou a substituir as pedras de basalto negro e rosa que faziam de Sacramento uma cidade extremamente característica pelas ruas calçadas com paralelepípedos e os passeios com as lájeas de pedra basalto rosa padronizadas em retângulos de várias medidas. Não é difícil vê-las ainda no centro histórico da cidade. Mas aproveitem, pois pouco a pouco, a partir das últimas décadas vêm também sendo, vilmente, substituídas por lajotas, ladrilhos e cerâmicas de muito mal gosto, com pleno beneplácito das autoridades públicas municipais, há anos.  

 

Os últimos ‘faturantes’ de pedra

Foi pensando em toda essa rica e desvalorizada história, que tem nas suas lembranças artistas e artesãos sacramentanos do quilate de Temístocles, Desidério, Bigico, Zé Bertolino, que o ET falou com três dos poucos 'faturantes' (aquele que esquadreja a pedra) da região, Alcides Marques Veríssimo 56, e seus dois filhos, Dener 31 e Dárlon 19, para conhecer um pouco da profissão de calcetaria.

No caminho de casa via, revia e me incomodava com aquele pesado negro assentado debaixo de um guarda-sol lavrando pedras. Com um pequeno gancho, diante de um monte de pedras de basalto rosa, arrastava uma delas por entre as pernas e começava o trabalho horas a fio. 

Nessa posição, com a coluna vertebral bem na vertical, utilizando ancestrais ferramentas temperadas, o martelo, o ponteiro (picola) e uma pequena galga, Alcides começava a esquadrejar ou 'faturar', como diz, o 'macaquinho', pedra um pouco menor do que o convencional paralelepípedo utilizado em vias públicas. Pouco usava a galga, que serve para dar o tamanho exato da pedra, de 13 ou 14 centímetros. Fazia tudo no olho. Milimetricamente, a pedra era talhada na medida correta para compor o piso interno da nova casa da Aninha Crema, no Bela Vista, residencial criado pelo seu saudoso pai, Renato Crema. 

Como dizem, a curiosidade faz o repórter e lá estava ouvindo a história do uberlandense Alcides e sua vida de 'faturante'. Pedra a pedra, aquele monte ia se transformando em pedras lavradas, lapidadas como um diamante. Ele e o filho Dárlon, garoto de 19 anos, que já imitava o pai na arte da calcetaria. O filho Dener trabalhava no assentamento. E entre uma martelada e o som do martelo de 10 kg, alcançando sempre o mesmo timbre, desfiou sua história com algumas lembranças emendadas pelos filhos. 

“Comecei a lida cedo, tinha 12 anos quando peguei no batente plantando eucalipto para a Florestal Eldorado, em Frutal, ali no pontal do Triângulo. Já mocinho, comecei na pedreira como servente, arrancando a pedra bruta da montanha com risco de pólvora. Fura-se a pedra, joga a pólvora e explode. E com o tempo fui aprendendo a arte da calcetaria, sou 'faturante', como a gente chama. Daquela montanha de basalto, nasce a lájea para passeio, nasce o paralelepípedo para as ruas e o macaquinho”, conta. 

Aprendi o ofício com outros mestres. Meu pai, que era assentador de pedras e que deixou o oficio para meus irmãos, morreu quando eu tinha dois anos. Mas essa herança estou deixando para os filhos. Dos seis que tive, Dener, Dárlon e Douglas trabalham comigo”. Os outros filhos de Alcides são três mulheres, Dani, Daiane e Denise. E agora, recente, o casal adotou a pequena Ane. “É nossa filhinha do coração”, diz.

Alcides e seus filhos fazem de tudo no ofício da calcetaria. De simples calçamentos sobre areia com paralelepípedos, macaquinhos ou pedrinhas portuguesas a mosaicos desenhados por projetistas e arquitetos em pisos e paredes, incluindo monumentos, pirâmides, tubulões, cascatas e fretes. 

O seu rastro artístico com pedras está presente em várias cidades da região. “Trabalhamos com qualquer tipo de pedra, a mais comum é o basalto rosa, preto e branco, mas trabalhamos com a pedra miracema, São Tomé, asa de barata, ardósia, ouro verde, pirinópolis...”

Nos seus mais de 40 anos de profissão Alcides é grato a Deus pelo o que a vida lhe reservou. “Sou um homem muito feliz. Apesar de um trabalho duro, foi o que achei naquela época ainda garoto e órfão de pai. Mas é um trabalho que faço com amor, pois ele me deu tudo o que tenho. Uma esposa maravilhosa, seis filhos dos quais me orgulho e agora, outra filhinha do coração... Então, só tenho que agradecer a Deus por nunca ter me envolvido com violência, com desonestidade ou tanta coisa ruim que a gente vê por aí”, diz, lembrando de um episódio ocorrido há mais de 30 anos quando veio jogar em Sacramento contra o time do Esporte Clube Marianos. 

“- Era moço feito, jogador do 'cascudo' (time reserva) da Usina dos Macacos, quando viemos pagar um jogo aqui em Sacramento lá pelos anos 80, contra os Marianos. Eu trabalhava na firma Araxá Britagem na Usina dos Macacos, o Marianos foi jogar lá e ganhamos o jogo. Aqui, no jogo principal, os titulares saíram na frente. E quando fizemos dois gols, a torcida caiu de pedra e virou um tabu esse jogo”, lembra, dando boa gargalhada.  

(WJS)

De pai para filho
É como dizem, filho de peixe... Mostrando, orgulhoso, o belo trabalho já feito no pátio, o primogênito Dener Ferreira Veríssimo, 31 anos, casado há dez, dois filhos, explica que o calçamento é todo feito em basalto rosa, que pode ser também no preto ou branco. Quem faz o corte é meu pai e a gente vem assentando, usando uma massa seca por baixo, ajustamos a pedra e depois molhamos para entrar com o rejunte, feito de uma nata de cimento e areia, que sela tudo. Depois de pronto pode passar tudo aqui, até caminhonete”, afirma o mestre nos seus 20 anos de experiência. 
“Eu era menino quando meu pai me ensinou, vou completar 32 anos e já trabalho há 20 anos nessa profissão”, explica apresentando o irmão Dárlon, que tem 19 anos e desde os dez também trabalha com o pai. Ambos deixaram os estudos depois que completaram o ensino fundamental e se firmaram na profissão. São unânimes em afirmar que a profissão, apesar de exigir grande esforço, os faz felizes e realizados. “Sou feliz, me sinto realizado, foi o que aprendi a fazer e faço bem. Se Deus quiser vou me aprimorar cada vez mais”, diz Dener, com o irmão, confirmando o amor à profissão e o desejo de se aperfeiçoar cada vez mais.
Agradecendo, Alcides fecha sua história deixando o contato da A.L.D., nome da empresa formada pelo quarteto, Alcides, Dener, Dárlon e Douglas, que faz qualquer serviço de pedras, desde a retirada da pedra bruta da pedreira ao calçamento final. Ligue: (34) 9.9134-2782; 9.9971-4689 ou fixo: (34) 3229-3353.