O ex-prefeito de Sacramento por três mandatos, José Alberto Bernardes Borges, autor da Lei 173, de 12 de outubro de 1980, que criou a Comenda da Ordem de ossa Senhora do Patrocínio do Santíssimo Sacramento, durante cerimônia de outorga da homenagem a seis mulheres sacramentanas, dia 14, último, ata em que se comemorava os 100 anos de Carolina Maria de Jesus, o ex-prefeito exaltou o nome da escritora em seu discurso. Em entrevista ao ET, o ex-prefeito falou sobre Carolina, o encontro que teve com ela em São Paulo e sobre projetos na cidade. Veja a entrevista que concedeu ao jornalista walmor j.s.
ET – Qual a maior contribuição de Carolina prá você?
José Alberto - Mostrei isso em meu discurso em frente ao Arquivo Público, naquela homenagem. Disse ali que, naquele lugar se guarda a história, a vida de nossos antecessores. Naquele lugar especial se comemorava naquela data, 14 de março, o nome da escritora Carolina Maria de Jesus. Mulher criada na favela. Mulher que mostra no seu diário a opressão, a discriminação da pobreza com a riqueza, da cor. Transformado em livro, nasce com a obra uma ideia, planta-se uma semente. É preciso buscar solução para a fome, para a moradia, o estudo. Isso tudo ela mostra no seu livro e o seu valor está aí, por mostrar os nossos problemas sociais e ela vai mais adiante, mostra o problema político do país, criticando em seu livro, abertamente, os políticos da época, como Jânio Quadros, Adhemar de Barros, Juscelino Kubistchek, Carlos Lacerda...
ET - Você disse em seu discurso que conheceu Carolina no lançamento do livro, 'Quarto de Despejo', na Livraria Francisco Alves, em São Paulo. Antes de contar sobre esse encontro, como foi sua vida de estudante em São Paulo, coisa rara na época...
J. Alberto - Sinto-me muito honrado, porque tive a felicidade de conhecê-la ainda nos meu tempo de estudante em São Paulo e é uma história muito interessante. Bom, primeiro, então, os estudos. Tinha onze anos quando cheguei em São Paulo, como interno do Colégio São Bento, para fazer o Admissão ao Ginásio. Aquele cursinho propedêutico para cursar o antigo curso Ginasial, hoje seria do 5º ao 9º ano do ensino fundamental. Logo que concluí o Admissão, fecharam o internato do Colégio, então me transferi para o Colégio Arquidiocesano, dirigido pelos irmãos Maristas, onde cursei todo o Ginásio. Aos 16 anos, já como aluno externo, voltei para o São Bento, onde cursei o curso Clássico, que chamamos hoje de Colegial...
ET - São Bento e Arquidiocesano, como eram esses colégios?
J. Alberto - Eram colégios confessionais, ambos excelentes, cada um a seu modo. Mas a diferença entre o Arquidiocesano e o São Bento era muito grande. Pra começar, os maristas eram muito mais severos, exigentes, adotavam o regime francês. Tínhamos aulas de religião todos os dias, tínhamos que decorar o evangelho e ir à frente explicar... Com os monges beneditinos era muito diferente, tínhamos aulas mais apologéticas, diria mais lights. Eram muito mais acessíveis, bondosos, calmos, tranquilos. Mas ambos eram tidos como colégios referência no país.
ET - Você disse há pouco que cursou o Clássico, com duração de três anos, um curso que antecedeu nosso Colegial de hoje. Mas havia também o Científico...
J. Alberto - Sim, era assim: Havia dois cursos específicos, um para a área de Humanidades, que era o Clássico, onde se dava destaque às aulas de Língua Portuguesa, História, Geografia, Filosofia... e o outro era o Científico, voltado para as áreas exatas, onde os alunos se preparavam para os cursos de Engenharia, Medicina, Física. A preparação do Clássico era para os cursos de Direito, Filosofia, Línguas, Pedagogia...
ET - Você queria mesmo ser advogado?
J. Alberto - Não, eu toda vida quis fazer medicina. Mas caí na bobagem de fazer um teste vocacional no São Bento, que mostrou meu pendor para a área de Humanidades, por isso fiz o Clássico. Só que eu queria ser médico, mas meu pai me dizia para ser advogado para saber me defender dos malandros (risos). Quando eu me formei com 23 anos, quis fazer medicina, mas não tinha cultura científica, minha formação toda foi para a área de humanas.
ET - Nós estávamos falando da diferença entre os dois colégios...
J. Alberto - Isso. Embora mais rígidos com os alunos, os maristas do Colégio Arquidiocesano tinham uma preocupação maior com o lado social da Educação. Nós fazíamos trabalhos com a comunidade, trabalhávamos nas favelas em volta do colégio. O objetivo era nos mostrar que a vida não era aquilo que vivíamos dentro do colégio. E, realmente havia muitas pessoas que passavam fome, não tinham infraestrutura nenhuma. Nós sempre estávamos nas favelas, dávamos catequese, eu consegui uniformes para os meninos jogar futebol..
ET - Nesse trabalho nas favelas você chegou a ter contato com Carolina, no Canindé?
J. Alberto - Não, nosso trabalho era mais próximo do Colégio. No meu encontro com Carolina, eu já havia retornado para o Colégio São Bento, onde eu fiz o Clássico, como eu disse, eu já era rapazinho. Os monges, mais acessíveis, mais abertos focavam o ensino na análise, no desenvolvimento de ideias. E sempre nos pediam para levar jornais para analisar e discutir as principais manchetes... Eu, embora morasse em internato em São Paulo há alguns anos, guardava o meu jeito interiorano. E muito caipirinha, bobinho, eu achava que todo mundo conhecia Sacramento. Eu vivia perguntando para os colegas: 'Mas vocês não conhecem Sacramento?'. Virava, mexia eu perguntava isso, até que passaram a me chamar de Sacramento. Acho que não estava nem no mapa (risos). A cidade era toda de terra, não havia nem luz, na época era a usina Cajuru... Os colegas, às vezes, queriam vir passar as férias aqui, ai que vergonha, meu Deus. Como? (risos).
ET – Voltando aos jornais...
J. Alberto – Sim, um dia, numa das aulas, um colega gritou: 'Ô, Sacramento tem uma conterrânea sua dando autógrafos aqui perto. Olha aqui o que está escrito: Quarto de Despejo'. E me deu pra ler a notícia. A nossa aula terminava às 11h45 e ela estava na livraria Francisco Alves, uma livraria muito importante em São Paulo, que ficava na rua Líbero Badaró, a uns 500 metros do colégio e resolvi ir lá conversar com ela.
ET - Conversar? Como se já a conhecesse, assim há muito tempo?
J. Alberto - Eu não fazia nem ideia de quem era Carolina, nunca tinha ouvido falar. Ela tem razão no livro Bitita, quando diz que sofreu muito em Sacramento. Ninguém falava dela por aqui, não. Mas eu li no jornal 'A Gazeta', a notícia. Lembro que isso foi no mês de agosto, eu tinha acabado de voltar das férias. E resolvi ir conversar com ela, dizer que eu era de Sacramento. Comprei o livro e fui para a fila do autógrafo. Lembro-me como se fosse hoje, ainda estava meio frio e ela estava com um paletozinho, um turbante, muito humilde. Eu cheguei empolgado e lhe disse: 'Sou seu conterrâneo, de Sacramento'. Quando eu falei isso, ela me olhou e me deu uma... 'Como vai aquele pão sem fermento?'. Fiquei meio pasmo, mas respondi, timidamente: 'Vai indo' (risos).
ET - Já ouvi várias vezes essa história. É fantástica! Quanta coisa está por trás dessa pergunta da Carolina. Talvez, o diário todo de Bitita, herdado até pela filha, que lamenta a exploração política que fazem da figura de sua mãe... Mas a sua resposta, na verdade, queria dizer, 'vai indo... sem fermento', né?
J. Alberto – Pois, é, ainda mais naquela época... Mas ela continuou: 'E aquele povo do Jerônimo Borges, já loteou aquela chácara pra cidade crescer?'. E eu, quase monossilábico: 'Ainda não'. E a conversa acabou por ali. Conversei com ela achando que ia dar Ibope, mas ela veio com essa. Ela me deu o autógrafo no livro, saí logo e fui embora.
ET - Você ainda tem o livro?
J. Alberto - Não, logo que construí o Museu Municipal Corália Venites, eu o doei ao acervo da 'Galeria dos Prefeitos', um espaço no museu reservado a pequenos objetos usados pelos prefeitos da cidade. Quando inaugurei o museu, a Galeria foi também inaugurada. Ali deixei o livro Quarto de Despejo com o autógrafo da Carolina, uma caneta tinteiro usada por mim para sancionar várias leis, além de um outro livro autografado pelo Juscelino Kubistchek, intitulado, 'Alvorada do amanhecer'. Um dia estive lá no museu e cadê o livro da Carolina? Fiquei doido. Mais tarde o encontrei. Já o livro do JK desapareceu do Museu...
ET - Nunca mais a viu?
J. Alberto - Não, tive aquele curto diálogo, meti o rabo entre as pernas e saí. Mas bem mais tarde, por conta de um trabalho na Faculdade, Clarice Lispector me respondeu uma carta.Lembra? Nós estudávamos juntos em Uberaba, você fazia Jornalismo, eu Português. Na prova oral caiu, 'O Lustre', de Clarice. A professora me deu as orientações e eu não concordei muito com a opinião dela, a respeito da interpretação da obra. Ela queria que fosse do jeito dela, eu do meu. Muito esperto, escrevi à Clarice Lispector, pensando até, 'essa mulher nunca vai me responder'. E não é que respondeu, afirmando: 'Prezado leitor, interprete do jeito que você quiser, a obra foi escrita para isso. Sinta o que você quiser'. Na apresentação do trabalho, mais uma vez a professora me contestou. Então, tirei do bolso a carta da autora do livro e mostrei para ela. A professora quase caiu dura...
ET - Mas o que tem a Carolina a ver com sua carta à Clarice?
J. Alberto - Elas eram muito amigas... trocavam confidências e se encontravam muito. Naturalmente, conhecia toda a obra e a vida de Carolina, que era de Sacramento. Como eu era seu conterrâneo, uma coisa puxa a outra... Hoje fico pensando: Carolina lançou o seu livro numa das livrarias mais importantes de São Paulo, mas a gente era menino ainda não tinha consciência da importância que tinha aquela obra e aquela mulher. Obra traduzida em vários idiomas, mostrando a pobreza, a discriminação social, a política da época...
ET - Que coisa, né, ainda viva, depois de lançar o livro, traduzido em vários idiomas, nunca foi convidada para vir a Sacramento para fazer o lançamento da obra na sua cidade natal, para receber uma homenagem. Quer negligência das autoridades da época, não?
J. Alberto - Então! Foi mesmo uma falta de consideração. Outro fato interessante é que o jornalista Audálio Dantas, que a descobriu quando cobria a inauguração de um parque infantil na favela do Canindé, ela já era uma líder. Ficava afastando os bebuns que queriam subir nos brinquedos e ele a ouviu dizer: “Se você não sair daí, vou colocar o seu nome no meu livro”. Ela era respeitada na comunidade onde vivia. Mas não sei se ela viria a Sacramento. Acho que não. A filha veio bem depois.
ET - Carolina morreu em 1977, você como vereador fez alguma menção sobre ela?
J. Alberto – Infelizmente, não, nem como prefeito. Deveria ter feito, mas foi um lapso que me arrependo. Ao retornar a Sacramento, nunca tive intenção de ser político. Fazíamos uma política comunitária através do jornal O Passa Perto, da ODUS – Organização dos Universitários Sacramentanos, especialmente em favor de implantar a Cemig na cidade. Foi quando, em 1963, um grupo de jovens recém saídos da universidade, Sérgio Rezende, José Artur, Jamil Salim Leme, Hidelberto Castanheira e eu decidimos nos candidatar e fomos eleitos, na administração do prefeito José Zago Filho, tendo como vice, Hugo Rodrigues da Cunha, com a grande prioridade de trazer a Cemig, para a cidade, então iluminada com os tomatezinhos da usina Cajuru. E a substação da Cemig ficava aqui colada na Praça de Esportes. E conseguimos. Mas não nos lembramos da Carolina..
ET - Então, a Carolina tinha toda razão em perguntar pelo 'pão sem fermento'?
J. Alberto - De fato, ela tinha toda razão. E eu fiquei sempre com aquilo na cabeça, mas tive um grande mestre, meu avô, que dizia o seguinte: “Ah, se os velhos pudessem e os moços soubessem, a vida não seria assim”.