Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Ildeu: O velho guerreiro

Edição nº 1410 - 18 Abril 2014

Ildeu Felício do Amaral, 74, é mais uma daquelas pessoas imprescindíveis nos dias atuais, pelo menos antes que tudo seja descartável, pelo seu ofício: ele é um reciclador, um especialista em conserto de eletrodomésticos. Já teve muito serviço, mal dava conta das freguesias. Ao longo de sua vida foram milhares de  enceradeiras, ferros de passar, liquidificadores, secadores de cabelo, batedeiras, etc. Hoje,  a oficina ali na Capitão Borges, onde ele passava o dia inteiro cerrou as portas. 

Natural de São Gotardo (MG),  filho de José Felício do Amaral e Zolina Vieira do Amaral, Ildeu chegou a Sacramento em 1956, aos 17 anos. Quatro anos mais tarde,  no dia 10/09/1960, casou-se com Terezinha Vieira do Amaral e juntos criaram os filhos: Maria de Fátima, José Maria (Poliana) Maria José e Marta, filhos que lhe renderam quatro netos e dois bisnetos.  Pelos relevantes serviços realizados na comunidade recebeu da Câmara Municipal o título de cidadão sacramentano. 

Aposentado, religioso ao extremo, Ildeu fez história. Era ali na oficina o seu point, papeando com um e outro passante, sempre com a fala calma, baixa e cheio de boas  histórias, principalmente se for com algum truqueiro. Enquanto isso, as ágeis mãos de mestre trabalhavam nas peças antes de metal, hoje tudo de plástico. Mas agora, virá o merecido descanso ao lado da companheira de todas as horas há 53 anos, a querida Terezinha, que acompanhou a simpática entrevista do velho 

Guerreiro Ildeu. 

 

ET - Você nasceu em São Gotardo, uma região com fama de gente brava, valente, aliás, tem uma cidade perto de S. Gotardo que chama Tiros... Você já foi um daqueles bravos da região, de revólver na cintura, ou sempre foi essa pessoa calma que conhecemos?

Ildeu - Não herdei nada de violência, sou o Ildeu que todos conhecem. Toda vida fui muito tranquilo, pacato. Mas a região, como você diz, tem fama, sim, de gente valente,  principalmente a cidade de Tiros, é um lugar conhecido pela valentia das pessoas. Mas hoje isso acabou, o povo de hoje é mais civilizado. 

 

ET - O seu nome de família, Amaral, vem de pessoas muito destemidas. Na trilogia, O Tempo e o Vento, Érico Veríssimo registra a saga da família Amaral na formação do Rio Grande do Sul, Coronel Ricardo Amaral, Francisca Amaral...  E da região chegaram também a Sacramento, os Furtado, o próprio Monsenhor Saul Amaral. Você tem parentesco com esse pessoal? 

Ildeu - Dos Amaral do Rio Grande do Sul, eu acho que não tenho nada, não. Se tenho, nunca fiquei sabendo. Mas de São Gotardo lembro-me de muita gente, os mais antigos, porque saí de lá em 1956, com 17 anos e nunca mais voltei. Os Furtado vim conhecer aqui em Sacramento, o Cincinato, o Boanerges, que era uma pessoa muito querida, amigo ligado no trabalho voluntário da Igreja. Sobre o Mons. Saul Amaral, também não sei. Pode até ter sido meu parente, mas nunca procurei saber.  

 

ET - Fale um pouco de seu dia a dia em São Gotardo... Como foi sua infância?

Ildeu - Na verdade, eu sou da zona rural de S. Gotardo. E fui criado como o pessoal do tempo antigo, trabalhava e estudava. Levantava de madrugada e ia buscar bois pra carrear, a pé, descalço. Depois do almoço, ia pra escola, era uma escolinha de roça, mas estudei até o quarto ano. Nunca me esqueci das professoras. Minha primeira professora chamava-se Sebastiana Coelho; a segunda, Agripina Gonçalves; a terceira tinha um nome engraçado que eu não esqueço de jeito nenhum, Celeste Tocafundo e, no quarto ano foi a Da. Regina Ribeiro de Moraes. Eu tinha 13 anos quando terminei  o primário ano e aí meu pai me levou pra roça de vez. “Chega de escola!” – dizia ele. Éramos sete irmãos e todos trabalhando. E havia muita fartura em casa, embora o lugar fosse de muita pobreza. Nunca nos faltou nada. 


ET - E seu tempo de jovem numa comunidade rural, como eram as diversões?

Ildeu - Muito trabalho e muito pouco de diversão. Cinema eu não sabia o que era, vim conhecer aqui em Sacramento, depois dos 18 anos. Mas lá havia umas festas muito boas, nas capelas de roça. Todo ano havia as festas tradicionais, muito animadas, com quermesses e bailes. Mas nos bailes era só quando o pai deixava. Me divertia muito também no futebol. Eu era o que chamavam de  'centeralfo' (center half), hoje dizem quarto-zagueiro, mas eu era ruim que dava dó (risos).

 

ET - Como você veio parar em Sacramento?

Ildeu - Papai toda a vida foi colono de fazenda. Nessa época, nós morávamos em uma fazenda do fazendeiro, João Quieu, que comprou terras aqui no município de Sacramento, onde é hoje a fazenda do finado Natal Zago, na região do Cocal. Ele trouxe toda a família prá trabalhar aqui. Viemos todo mundo, pai, mãe, filhos e agarramos na lavoura.  Depois de três anos, ele retornou a São Gotardo, mas decidimos ficar por aqui. Só voltei a São Gotardo pra buscar o batistério pra casar, nunca mais voltei (risos). A família ficou por aqui  e aí cada um foi se virando. 

 

ET - Já era casado?

Ildeu - Não. Foi nessa fazenda que conheci a Terezinha, minha futura esposa. Ela morava na fazenda ao lado. A fazenda do pai dela era a pouco mais de um quilômetro de onde morávamos. Em 1960, Terezinha e eu nos casamos e fomos morar na fazenda do meu sogro, onde ficamos dois anos. Logo depois fui trabalhar com o Jair Ferreira, na fazenda Olhos d'Água. Ali fiquei 12 anos trabalhando como vaqueiro. Retornamos a Sacramento e eu aluguei uma chacrinha do meu sogro ali no Areão. Trouxe um gado da fazenda e fui tirar leite, que vendia na rua numa carrocinha, para uma freguesia certa. Era só entregar de casa em casa, mas isso só durou um ano.

 

ET – Por quê?

Ildeu - Eu tirava uns 50 l de leite, era pouco. Resolvi arriscar no comércio. Eu só sabia mexer com lavoura e gado, mas arrisquei abrir um mercadinho de frutas, na Visconde do Rio Branco, ali em frente ao Sacramento Clube, e deu muito certo. Foi ótimo, um ponto muito bom. Foram onze anos no mercadinho. Daqueles rendimentos eduquei meus filhos e construí a casa onde moramos. Depois, começaram a chegar os sacolões e eu estava já pensando em mexer com eletrodomésticos, porque antes de abrir o mercadinho trabalhei alguns meses com o Jerônimo  e  fui aprendendo. No próprio mercadinho, eu dividi o cômodo e comecei a oficina. E quando fechei o mercadinho, em 1985,  mudei a oficina pra av. Capitão Borges, onde passei 28 anos. 

 

ET – Dizem as pessoas mais antigas que os aparelhos eletrodomésticos de sua época era bem melhores. Você concorda?

Ildeu – Sim, completamente. Os aparelhos antigos davam conserto. Hoje, as coisas não são feitas pra consertar. Usou, estragou, joga fora. É quase tudo descartável. Hoje tem uma tal da garantia... Só que vence a garantia, o produto estraga e 70% não tem conserto. E esse foi um dos motivos que me fizeram parar, além de um problema na coluna, por conta da posição inclinada sobre os aparelhos para consertar, um esforço repetitivo durante quase 30 anos, que me causou uma lesão na coluna. E depois, acho que oficina igual a minha nem existe mais... 

 

ET - A gente sempre conheceu o Ildeu e a Terezinha muito ligados a um trabalho voluntário junto à Igreja. De quem você herdou essa religiosidade, foi da Terezinha?

Ildeu - Minha família era católica de nome, mas não era muito de frequentar as cerimônias religiosas, não. Mesmo porque morávamos na roça. Mas eu herdei essa religiosidade do Pe. Cirilo, vigário de S. Gotardo, que me batizou e me deu a 1ª comunhão. Foi ele quem me levou para a Igreja. Um dia ele foi em casa comprar um porco e me perguntou se eu gostava de igreja. Eu disse que gostava e aí ele retrucou: “Mas eu nunca te vi lá, menino. De hoje em diante você vai pra missa. Deixa o cavalo amarrado lá em casa”. E no domingo seguinte,  eu fui, às 7h da manhã,  e nunca mais parei. Devo isso ao padre Cirilo, ele foi que me catequizou.   


ET - Mas a Terezinha mais tarde deu também uma mãozinha...

Ildeu – Sempre deu... Depois de casados, a participação era conjunta. Ela era 'Filha de Maria' e eu 'Congregado Mariano'. Já fui ministro da Eucaristia por seis anos, já trabalhei como tesoureiro na paróquia, já ajudei muito em festas, eu sempre gostei desse trabalho voluntário. Padre Vicente e eu éramos muito amigos, ele não saía daqui de casa, até pra tomar uma cervejinha juntos. Ele me dava muito serviço, o de motorista para levá-lo nas celebrações nas capelas rurais.  

 

ET – Sabemos que Ildeu tinha outras duas paixões, além da Terezinha e do trabalho na Igreja, a música e o jogo de truco. Quando a música apareceu na sua vida?

Ildeu - Desde menino, meus pais não tocavam, mas papai nos comprou um violãozinho velho e um acordeom 80 baixos e eu aprendi tocar sozinho, de ouvido mesmo. Primeiro, a sanfona, ia até pros forrós de roça ajudar a tocar, depois o violão, aprendi umas batidas pra fazer um sertanejão, mas o acordeom era minha paixão.  A música que eu mais gostava e sabia tocar muito bem era 'Quarto centenário', do Mário Zan, o maioral. Ele tem muita música boa, o Capricho Cigano que o sacramentano Heleu Araújo fez a letra e gravou com ele. 'Eita' música bonita! Toquei muita quadrilha nas festas juninas da Apae, mas gostava mesmo era de folias de reis. Mas  tive de parar, porque a gente tocava de pé e era muito esforço. 

 

ET - E o truco, você foi um grande campeão, né? Aprendeu com quem e por que parou?

Ildeu. Rapaz, parei, porque enjoei de ganhar troféus. Não perdia uma (Risos). Mas é verdade, tenho 52 troféus e de repente perdeu a graça. Aprendi jogar truco  lá em São Gotardo, mas firmei mesmo foi aqui, a partir dos anos 70, porque truco não tem como ensinar, a gente aprende é no jogo mesmo e tem as manhas, os sinais, porque se a gente não souber o que está nas mãos do parceiro, não dá pra jogar. Tem que estar bem afinado, muitas manhas e nisso eu sou professor, são quase 50 anos de truco.

 

ET - Nesse tempo é possível escolher um melhor parceiro?

Ildeu - Tive grandes parceiros, como o Alfredo Bizinoto, o melhor deles. Foram 23 anos de parceria, o jeito que ele pegava as cartas eu já sabia o que ele tinha. Mas tive também o seu Olivério, o Filim das Casas Pernambucanas. Um parceiro muito bom também. Tenho troféus que conquistei com sete parceiros diferentes, todos muito bons. Ultimamente não participo de torneios, tenho ficado na coordenação, mas toda terça-feira, jogamos Douradinha, um truco de seis parceiros, lá na casa do Ciro.  Esse grupo se reúne toda terça-feira há 23 anos. Já perdemos seis parceiros, que faleceram e arrumamos outros. E é assim, morre um, a gente respeita uns dias e depois pega novamente, com novos parceiros.


ET - Ildeu, a vida pra vocês foi cheia de altos e baixos, isto é, nem tudo foram flores, houve dores e muito fortes, com a morte da filha Jusa. Mas diante de tanta coisa boa, você diria que tudo valeu a pena?

Ildeu - Com certeza, começaria tudo outra vez. Tudo o que acontece na nossa vida, inclusive a perda da minha menina, são coisas que vêm de Deus. A morte dela  mexeu comigo, nunca mais toquei sanfona, mas a gente sabe que é a vontade de Deus. Jusa foi vítima de leucemia e faleceu aos 27 anos. Fizemos tudo, mas foi feita a vontade de Deus. 

 

ET -  Você sabia que está fazendo uma falta danada ali naquela garagem da Capitão Borges?

Ildeu - Já me falaram isso, várias pessoas, mas fazer o quê? Eu não estava dando conta mais, parafusos, chave de fenda escapulindo das mãos... Pensei, não dá mais... Mas  eu também estou lutando pra não sentir falta...


 ET - Agora pra finalizar: se fosse pra você gritar 'truco' pra sua vida, o que ou qual momento você escolheria?

Ildeu - À família. Minha esposa, a vida de casado, meus filhos...