Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Carolina Maria de Jesus: Uma mulher que transformou a vida de Madalena Magnabosco

Edição nº 1416 - 30 Maio 2014

Nestes 100 anos de Carolina Maria de Jesus, o ET entrevistou a Madá, amiga querida dos tempos de roda de samba e canções pelas então belas vias públicas de paralelepípedos de Sacramento, hoje quase todas transformadas no piche negro... Mas Madá é hoje a Dra. Maria Madalena Magnabosco, 53, Psicóloga Clínica, Psicopedagoga, Doutora em Literatura Comparada e PhD em Estudos Culturais. Atua em Belo Horizonte, para onde se mudou em 1984 e onde se formou pela UFMG. Trabalha em Consultório de Psicologia e é professora das Faculdades de Psicologia (Graduação Fead e Pitágoras) e do curso de Pós Graduação em Análise Existencial e Gestáltica. Autora da tese, 'Reconstruindo imaginários femininos através dos Testemunhos de Carolina Maria de Jesus - Um estudo sobre gênero', escrita em 2002, na conclusão de seu doutorado, um trabalho que, segundo ela, a 'realizou' e também 'transformou'. “Estudar Carolina me possibilitou compreender diversos aspectos da história de Sacramento e de minha própria história em Sacramento. Um estudo como esse nos torna o próprio filho pródigo, pois retornamos para casa com outras bagagens e consciências”. Veja a entrevista que concedeu ao jornalista Walmor Júlio Silva.


ET – Carolina narra no seu Diário de Bitita a sua vida sofrida em Sacramento. Esse sofrimento era normal em relação à raça negra, ainda muito discriminada, ou de fato, Carolina teve uma vida realmente mais sofrida, ela realmente era uma mulher perseguida pelo fato de ser negra ou pelo fato de ser mais independente e de não levar desaforo para casa?

Madalena - Um diário é sempre um convite a uma intimidade, uma interiorização do sujeito em busca de compreensão para suas vivências relacionais. No Diário de Bitita, Carolina teve a oportunidade de, através da escrita, organizar seus conteúdos afetivo-emocionais para uma compreensão do que era viver em um contexto histórico de discriminação étnica, de gênero e de classe social. Seu sofrimento foi a expressão de uma rede de relações ainda pautadas em preconceitos quanto a cor da pele, quanto a ser mulher e quanto a ser neta de escravos. Enquanto ela pensava o mundo e suas relações a partir do Ser as relações tradicionais da época a recebiam a partir do status quo do Ter. Esse foi seu grande sofrimento. Não ser recebida como pessoa, mas como estereótipo de categorias sociais que distribuía e especificava conhecimentos, posições sociais e pertenças.

 

ET - Em São Paulo, ela suportava as  perseguições, as injustiças, afirmando até que já estava acostumada: “Sou forte, não deixo nada impressionar-me...”, dizia, escrevendo seu Diário. E, aqui em Sacramento, também já apresentava essa fortaleza, ou sofria mais calada e resignada?

Madalena - Carolina, apesar de todos os sofrimentos advindos de preconceitos e discriminações, possuía a competência humana da resiliência (palavra advinda da física para dizer da qualidade de um material que suporta tensões sem se romper). Entretanto, pelos limites de conhecimento da época essa resiliência foi lida e tratada como impertinência, ainda mais vinda de uma mulher que não se enquadrava nos cânones hegemônicos de uma cidade tradicional quanto a etnia e aos papéis do feminino.

 

ET - A sua independência é provada até no tipo de vida que levava, ao se relacionar com homens diferentes para ter seus filhos. O que a fez uma mulher tão independente numa época em que os valores familiares eram tão respeitados? 

Madalena - Creio que histórias de discriminações e preconceitos, com pessoas que não se rendem e nem se definem pelo olhar do outro, incita as pessoas a viverem apesar de. A vida passa a ser o recurso maior com que as pessoas contam e seu valor é prioritário em relação ao “que os outros irão pensar”. Carolina foi uma peregrina e quando caminhamos em territórios diversos transformamos nosso conceito de moral. Para Carolina o conceito de família não se pautava pelo modelo patriarcal que predominou em nossa história até o final da modernidade. Família é quem nos acolhe e nesse sentido Carolina sempre reconheceu quem a acolheu (tal como as irmãs de caridade em Franca, o Dr. Zerbini em São Paulo). Quanto a ter filhos de pais diferentes, ela exercia sua sexualidade (aspecto comum a todo ser humano). Entretanto, nunca sabemos quem é o outro, até convivermos por mais tempo com a pessoa. Assim, não temos garantias quanto a temporalidade da convivência. E, quando a vida é o valor maior (tal como era para Carolina), se o outro não  reconhece a importância da parceria, o melhor é partir. Como nos disse Frida Kallo: “Onde não há amor não se demore”.

 

ET - Aliás, ela se sente essa fortaleza em uma de suas frases antológicas. “Ele é de ferro, eu sou de aço. Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrizáveis”. Isso é fantástico, não, pra uma catadora de papel, favelada?

Madalena - Sem dúvidas! Carolina possuía a perspicácia de Rabindranath Tagore quando nos diz: “Ele não via que era fraqueza toda força que se exerce por imposição. Os fracos por medo de serem livres usam a força como modo de nos calar.” Carolina sabia ser a palavra, tal como no conto de João Guimarães Rosa – Maria Mutema – aquele chumbo derretido que introduzido no conduto auditivo produz ruídos internos no outro. Nada mata mais que uma palavra mal dita, bem como nada constrói mais que uma palavra bem dita. Carolina sabia disto: as palavras possuem maná!

 

ET - Por outro lado, mesmo se sentindo discriminada, muitas vezes não tendo o que fazer no almoço para os três filhos, Carolina era uma mulher imensamente feliz. “Eu sou muito alegre. Todas as manhãs eu canto. Sou como as aves que cantam ao amanhecer”. Você que estudou a alma de Carolina, pergunto, de onde ela tirava essa coragem e essa alegria de viver, malgrado a carência?

Madalena - Penso que sua alegria é herança de toda uma história ancestral dos negros. Mesmo tendo sido tratados, vendidos, negociados como escravos, como não pessoas, eles têm uma concepção diferente da mentalidade ocidental pautada pelo individualismo, pelo valor do ter e pela cisão entre homem, natureza e universo. Para eles o homem é um todo, o que os torna pessoas não fragmentadas, inteiras diante da vida. Essa é a espiritualidade que o mundo ocidental perdeu mas que foi preservada por diversas etnias e que sustentava a resiliência de Carolina. Mesmo diante todos os reveses, sofrimentos e dores, imagino que a preservação de núcleos vitais de Carolina inspirou Gonzaguinha na música: “Eu apenas queria que você soubesse / que aquela alegria ainda está comigo / e que a minha ternura não ficou na estrada / não ficou no tempo presa na poeira/E que a atitude de recomeçar é todo dia toda hora/É se respeitar na sua força e fé/E se olhar bem fundo até o dedão do pé/Eu apenas queria que você soubesse/Que essa criança brinca nesta roda/E não teme o corte de novas feridas/Pois tem a saúde que aprendeu com a vida/” (brincadeira literária).

 

ET - Eu gostaria que você comentasse outras frases de Carolina. Além do lado trágico-cômico, o que ela quer dizer, além do denotativo, quando diz que, a elite morava na Sala de Visita, o centro rico da cidade; e o pobre, no Quarto de Despejo, a favela, que deu por sinal nome ao seu diário?

Madalena - Para quem sempre foi peregrina, morou em diversos lugares e encontrou algum repouso e acolhimento em um barraco de tábuas na favela, a casa possui uma simbologia imensa. Possuir uma casa com sala de visitas é uma metáfora que fala de uma desigualdade de classe e econômica, a qual implica em uma percepção de uma das consequências da modernização da cidade de São Paulo na década de 50: a criação do cinturão de miséria. Por essas expressões Carolina denuncia um cenário sociopolítico, pois sala de visita é luxo para quem vive em barracos de dois cômodos. E, tal barraco se equipara aos quartos de despejos de casas de pessoas mais abastadas. O que não se usa, o que não tem mais serventia é colocado no quarto de despejo. Penso serem metáforas possíveis nas leituras realizadas por Carolina de uma realidade do processo de modernização.

 

ET - E ela não poupou sequer os políticos. Que beleza quando ela diz que, para observar os políticos foi à Assembleia Legislativa. “A Sucursal do Purgatório, porque a matriz é a sede do Serviço Social, no Palácio do Governo. Foi lá que vi ranger de dentes. Vi os pobres sair chorando. E as lágrimas dos pobres 'comove' os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas... que 'observa' as tragédias que os políticos representam em relação ao povo”. Concorda comigo, Madá, que é uma frase espetacular?

Madalena - Realmente essa frase é de uma consciência política enorme. Incrível a percepção de Carolina e a compaixão que possuía ao conseguir se colocar no lugar do outro, principalmente no sofrimento que não comovia, em suas palavras, “os poetas de salão”; ou seja, aqueles que gestam políticas, mas não conhecem a necessidade real da população.

 

ET - Esse viés literário fora da norma culta da língua, essa poesia que ela traz intrínseca na sua prosa, como você analisa isso na sua tese. Você tem a opinião, por exemplo, de um crítico literário em cima da obra de Carolina

Madalena - Pensar em norma culta para ler Carolina é descaracterizar uma narrativa e um discurso testemunhal. Aliás, esse problema da norma culta foi uma das grandes interdições e críticas em relação à Obra de Carolina. No livro Cinderela Negra de Meihy e Levine encontramos a seguinte citação: 

Os leitores brasileiros reagiram ao diário de Carolina de forma consistente, objetiva e pesada, contrastando as visões de mundo expressas no texto com suas preferências políticas. Jânio Quadros deixou-se fotografar abraçando a escritora que ia, assim, oferecendo munição à crítica que a via como um sema sem controle da própria imagem. Ao mesmo tempo, outros filtravam passagens do livro para vazar suas mensagens: dom Helder Câmara, arcebispo progressista de Recife, disse que, “haverá quem chorará como comunista quando ver um livro como este”. (...) Luís Martins, distanciando-se da autora, afirmava que, “não sabia se Quarto de despejo seria, rigorosamente falando, um trabalho decente de literatura, mas é um livro que deixa marca.” Outros aclamavam o livro como um manifesto que deveria ser lido pelos “políticos, administradores, e candidatos a cargos públicos”. (...)

Em outras palavras, não podemos ler um autor fora de seu contexto, de sua história. Devemos pensar que o cânone literário desconsidera questões básicas na literatura: “Quem fala?” “De onde fala?” “Para quem fala?”. 

 

ET - O seu livro se aplica a que gênero literário? 

Madalena - Carolina falava a partir de seu mundo com o objetivo tanto de uma denúncia política quanto de uma realização pessoal. Seu gênero literário é o que conhecemos como Testemunhos Narrativos Femininos, o qual surgiu em 1970 em Cuba, como literatura de denúncia, principalmente a partir de grupos de minorias.

 

ET - O que você sabe sobre o relacionamento de Carolina e  Clarice Lispector? Sei que Clarice esteve no lançamento de O Quarto de Despejo. Sabe algo mais?

Madalena - Clarice esteve presente no lançamento do livro, tal como diversos outros autores e autoridades políticas. Entretanto, a relação formal predominou, pois são autoras com posicionamentos inteiramente diferentes. Clarice com toda uma história também de dor, depressão, renúncias aborda o humano a partir de um intimismo filosófico. Já Carolina aborda o humano em um cotidiano de sobrevivência e sua escrita é bem mais política que a de Clarice.

 

ET - Carolina apreciava uma boa leitura e detestava que os filhos lessem gibis, muito comuns na época. Um dia, ela conta, no Quarto de Despejo, que chegou em casa às 6h30 e o filho João não tinha posto o feijão no fogo. “Mandei ele acender o fogo. Depois dei-lhe uma surra.Com uma vara e uma correia. E rasguei-lhe os gibis desgraçados. Tipo da leitura que eu detesto”. Como você analisa Carolina em relação à educação dada aos filhos?

Madalena - Imagino que para uma mulher sozinha, criar três filhos não é fácil. Ainda mais quando se fica grande parte do dia na rua catando papéis e deixa os filhos em casa. Carolina – até como mecanismo de defesa para sobreviver – tinha suas durezas, asperezas e rigidezes. Entretanto, a questão da educação sempre foi algo importante em sua vida e história, principalmente por estar pautada pelo valor da honra. Em criança Carolina aprendeu muito desse valor educacional com seu avô, “Sócrates africano” – pessoa que a influenciou nos gostos com as estórias e em uma dignidade na vida. Diante suas parcas condições de vida, a educação era o legado que ela poderia deixar para os filhos. E, na época, ler gibi era coisa para “vagabundo, preguiçoso”, por ser considerado leitura inútil. 

 

ET – Terminando, Madá, gostaria que você comentasse outra frase histórica de Carolina, que não está em sua obra, mas foi dita ao ex-prefeito José Alberto Bernardes Borges, ainda estudante em São Paulo, quando também esteve no lançamento de seu livro. Ao se apresentar e se identificar a ela como sacramentano, Carolina, saiu com essa: “E como vai aquele pão sem fermento?”. Conhecia essa passagem,?

Madalena - Não conhecia essa passagem. Que engraçado!! Mais uma metáfora excepcional, pois ela disse através do símbolo como Sacramento poderia crescer, mas permanecia murcha, provavelmente por uma mentalidade ainda muito prisioneira a estigmas de classe, etnia e gênero. Lógico que essa leitura é em função de suas vivências em Sacramento, mas ela denuncia que Carolina tinha percepção de uma realidade local. Nos dizeres de Guimarães Rosa: “ Pãos e Pães – tudo é questão de opiniães”. Em outras palavras, cada um de nós significa o mundo a partir dos sentidos que pode compreender. Isso é bonito, pois constituí a diversidade do mundo e nos dá a oportunidade de sempre podermos resignificar a vida.

 

ET - Agora, finalizando mesmo, e esperando ouvi-la nesta manhã de sábado, no Festival de Inverno do Parque Náutico de Jaguara, um bate-bola, rapidinho. Ao escrever sua tese de doutorado sobre Carolina, você escreveu o mais completo trabalho sobre sua vida e obra. Então, resumindo, quais os aspectos que você destacaria na vida de Carolina Maria de Jesus, como:

Mulher - Uma pessoa resiliente que transformou a escrita, a poesia e a música em ferramentas para lidar com as situações limites da vida.

Símbolo feminino - Uma mulher que transpôs as fronteiras das tecnologias de gênero e ousou se colocar no mundo, apesar das categorias dos papéis sexuais do feminino e masculino que imperavam no contexto histórico de sua época.

Escritora - Alguém que soube perceber os movimentos vitais do cotidiano humano e seus conflitos transformando-os em literatura. Foi nosso Dostoievisk moderno.

Sacramentana - Origem que marcou Carolina em direções de sentido que possibilitaram construir seu caminho no mundo, apesar das limitações de sua condição histórica na cidade.