Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Walter Germano dá lição de vida

Edição nº 1129 - 23 Novembro 2008

Walter Germano, ou simplesmente Nenê, sacramentano, aposentado como alfaiate, é uma daquelas raras pessoas que vive a vida como ela deve ser vivida, com tranqüilidade, muitos amigos, uma religiosidade praticante, com a consciência da preservação ambiental e, sobretudo, com muita honestidade. Tudo isso, por certo, herdado dos pais, os saudosos, professor Antenor Germano e Julieta Germano de Araújo. Criado na vida simples de um lar cristão, ao lado dos irmãos, Wanda, Wanderley (falecido), Wacila, Waltenio (falecido), Wilma, Wagner e Waldice, Nenê fez inúmeros amigos na cidade e por onde passou. Os estudos foram poucos, sempre com o pai, na Escola dos Escoteiros, ali no bairro do Rosário, pelos idos de 1930. “Éramos muitos alunos e papai nos ensinava a todos na mesma sala. Português, Matemática, Álgebra, História Natural, Geografia, Desenho e Francês e todo mundo aprendia, ainda hoje me lembro do que ele ensinou”, conta com os olhos brilhantes da saudade que aquele tempo evoca.

Hoje, no alto de seus 82 anos, com uma saúde de ferro, Nenê dedica-se a um hobby muito especial: a pescaria. Mesmo sendo profissional, diz que nunca usou rede, nem tarrafas, nem arpão. “Tenho carteira da Capitania dos Portos, que tirei lá em Santos (SP), mas pesco apenas com anzol, nunca vendi peixe, nunca comercializei, pesco porque gosto, pra diversão, lazer”. Casado há 16 anos, com Maria Aparecida Borges, Nenê se declara uma pessoa feliz e realizada. E é ele nosso convidado para uma entrevista na celebração do Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro. Nenê fala de sua vida, das suas realizações, da sua felicidade e de tudo o que a vida lhe ensinou. 

 

ET -  Nenê, vamos falar do inicio da sua vida, de onde você nasceu, dos amigos e vamos passando o tempo, vasculhando o seu dia-a-dia...

Nenê - Quando eu nasci, meus pais moravam na rua da Estação (rua Joaquim Murtinho, ao lado de onde é hoje a Casa de Oração). Papai tinha uma chácara ali. O terreno começava no muro do cemitério (onde é o CRES, Madeireira Casarão) e seguia até no Sr. Goiano. Papai vendeu ali por $ 3.500 contos de réis e era dinheiro na época. Eu tinha 10 anos. Dali fomos para onde é hoje o Hotel Rio Grande...

 

ET – Filho de professor tem que ir pra escola cedo. Como foram seus estudos? 

Nenê - Pois é, os estudos naquela época, nas escolas regulares, eram muito difíceis, principalmente para as classes mais pobres. O que estudei foi com papai, o prof. Antenor Germano, em casa mesmo, até o 4º ano primário, como nós chamávamos na época. Era uma escola particular, dele mesmo, e funcionava no bairro do Rosário, ali onde é hoje a bicicletaria do Rogério. Papai alugava do Miguel pra fazer a escola, era a Escola dos Escoteiros. Tinha muitos alunos, e me lembro de muitos como o Mário Eugênio e o Benedito irmão dele; os filhos do Capitão Spirandelli, que morava num casarão, onde é o Supermercado Magnabosco. 


ET – O prof. Antenor morava na escola?

Nenê – Sim, nós morávamos ali mesmo. Tinha uma pensão, era um casarão e no porão havia o comércio do Antonio Gabriel. Mas havia também muitos outros colegas, a Mirtes do Tim Tim, a Marlene do Neca Português e vários outros. Era aluno do primeiro até o quarto ano, tudo na mesma sala. E naquele tempo a gente aprendia. O aluno ficava lá até aprender a lição. Graças a Deus, papai foi um homem letrado. Só que hoje, o professor perdeu muito o valor que tinha naquele tempo. Os pais entregavam os filhos para o professor para aprender, e enquanto não aprendia a lição não saía, não.  Papai era muito bravo, mas nunca me lembro de tê-lo visto usar a palmatória. Lembro-me daquele tempo como se fosse hoje.  No Rosário já havia a igreja de Nossa Senhora e o largo, onde é a praça. Ali havia um cruzeiro imenso no meio da praça tudo de terra. Eram poucas casas. Algumas até pouco tempo ainda estavam lá, depois foi acabando, foram derrubando.

 

ET - Mas havia outras escolas na cidade. 

Nenê - Tinha o grupão (E.E. Dr. Afonso Pena Júnior) e a Escola Normal, a Escola da Maria Crema (E.E. Cel. José Afonso de Almeida) e meu pai tinha a dele. Mas chegava o fim de ano, ele dava aula particular para muitos alunos da Escola Normal, havia aquelas moças bonitas, ele dava aula pra elas.

 

ET - Voltando aí no seu pai, o sr. Antenor Germano, a gente sabe que ele era um auto-didata, mas ele chegou a ter uma formação?

Nenê - Papai foi aluno de Eurípedes Barsanulfo, sabia muito. Papai não era daqui. A mãe dele ficou doente e eles mudaram pra cá pra ela se tratar com seu Eurípedes. Papai era rapazinho e começou a tomar conta de uns loucos, ajudando o seu Eurípedes no Colégio. Depois a mãe dele morreu, o pai foi embora e deixou ele aqui. Então, ele foi morar com a dona Chiquinha e o José Germano. Ela era uma das maiores quitandeiras da cidade, moravam numa casa onde é hoje o Hotel Rio Grande. Papai virou filho adotivo deles, e foi quando se tornou Antenor Germano, tomando o sobrenome da família. Eu não sei a origem da minha família. Papai tinha dois irmãos: minha tia eu conheci em Campinas, mas depois perdi o contato. Não sei se tenho outros parentes. Mas voltando ao papai, ele ficou morando na casa da dona Chiquinha e Zezão até o casal mudar-se para o Paraná. Durante todo esse tempo, ele estudou com o seu Eurípedes, que era, na época, um grande professor. 

 

ET - Você terminou o quarto ano e prosseguiu os estudos onde?

Nenê - Continuei os estudos na escola da vida. Terminei o 4º ano e fui trabalhar. Comecei com o Ângelo Vicentini: o filho dele, o Armando, e eu, engarrafávamos cachaça 'Malaquias', que vinha lá de Engenheiro Lisboa. Depois, resolvi aprender o oficio de Alfaiate, fui trabalhar com o Carmelito Jácomo e aprendi. Depois, ele mudou pra Uberaba e ficou o filho dele, o Paulo Jácomo. A alfaiataria era na oficina do Orestes, onde é hoje a EletroZema. O Deda trabalhava lá também com selaria. Mais tarde fui trabalhar com o Ângelo Bonatti, fazíamos ternos e roupas de mulher. Um dia, em 1946, já com 20 anos, resolvi mudar pra Uberaba, foi logo depois da guerra. Lembro-me que nessa época papai foi receber os pracinhas que voltavam da guerra: o Sérgio Scalon, o Sinval, o filho do Sr. Goiano, foi nessa época que houve o tiroteio atrás da Igreja e que morreu o Miúdo. 

 

ET – Você não está enganado, não? A história que conhecemos é que o tiroteio aconteceu na partida dos jovens para a guerra, e não na chegada...

Nenê - Eles estavam comemorando a volta da guerra e se desentenderam com a polícia. Voltando aos meus empregos, trabalhei também com o Mário Bessa um tempo e, em 1948, fui pra São Paulo, onde trabalhei na Confecções Bandeirantes, durante 20 anos. Nesse tempo fiz casa para o papai, onde moro hoje. Um dos donos, o seu Emílio Romano, era muito meu amigo, me arrumou o dinheiro pra comprar o terreno, $ 150 mil réis. Eu ganhava $ 30 mil réis... Durante dez meses recebia só a metade, até pagar o empréstimo. Lá em São Paulo, fui convidado pra ir pra muitas indústrias e um dia, resolvi ir para a fábrica de calças Dilor, trabalhar com Maier Chaiar Mogrado. Fiquei lá cinco anos, até a firma falir. Ele acertou com os empregados e como eu era chefe, tive que recorrer à Justiça.  Depois de muita pendenga, três anos, ele acertou tudo. Fiquei por lá fazendo uns 'bicos', até quando papai adoeceu e eu retornei a Sacramento em 1971, pra cuidar dele.  Nesse mesmo ano papai morreu, fiquei com mamãe e minha irmã.

 

ET - Aí abriu alfaiataria própria ou começou a pescar?

Nenê - Nem uma coisa nem outra.  Fui trabalhar com o Carabina, ele teve um problema no braço e eu fui fazer ternos pra ele até retornar ao ofício. A partir daí fui trabalhar com o Sussu, fazia paletós até ele fechar a alfaiataria.  Eu pensava em abrir minha própria alfaiataria. Pagava o IAPI como alfaiate, depois mudou pra INPS, continuei pagando, tinha o alvará e pagava os impostos na Prefeitura, mas nunca abri meu próprio negócio. Até que um dia eu me aposentei como alfaiate. 

 

ET – Ao contrário do que muita gente faz, vai pescar porque está nervoso, você aposentou-se, vida tranqüila, virou pescador?

Nenê - Comecei a pescar com o pessoal da Pestalozzi de Franca... Dr. Tomás Novelino e outros diretores e funcionários eram muito amigos de papai. E Dr. Tomás gostava muito de papai. Eles iam pescar e me chamavam. Fomos uns dos primeiros grupos a ir pescar no Pantanal, em fins da década de 70. havia um pessoal de Orlândia também que me convidava e o pessoal do laticínios. Como os fiscais passaram a exigir um pescador profissional para levar redes e tarrafas, o pessoal me propôs ir pra Santos tirar a carteira. Fui, fiz o curso e voltei com a Carteira de Pescador, expedida pela Capitania dos Portos. Fui lá tirar essa carteira de profissional da pesca, em 1984. 

 

ET- Qual a diferença entre pescador profissional e o amador?

Nenê - O profissional tem mais regalias. Pescador Amador é aquele que pratica a pesca de lazer, sem fins econômicos ou seja, não comercializa o produto. A Pesca Profissional é aquela exercida por quem faz da pesca sua profissão ou meio principal de vida. Para registro como pescador profissional deve-se procurar a unidade do Ministério da Agricultura. O amador pode pescar somente com vara de mão, caniço simples ou com molinete, linhada. Não é permitido uso de galão, rede, tarrafa, espinhel e outros materiais que são exclusivos de pescadores profissionais.. 

 

ET – Você disse que não usa nada disso!...

Nenê – É verdade, eu não pesco com esses apetrechos. Pesca pra mim é lazer, não comercializo peixes, não vivo da pesca. Quem pesca com rede e tarrafa quer é matar peixe. Gosto mesmo é de pesca com vara de mão. Não carrego peixe. A pessoa que usa esses apetrechos não está pescando, está destruindo. Um pescador precisa seguir normas pra poder preservar, nunca levei uma multa.

 

ET - E as histórias de pescador? Tem muitas?

Nenê - Ih, se tem, demais!!! (dando boas gargalhadas). Todo pescador tem. A pescaria é uma coisa muito boa, mas depende dos companheiros, uma boa prosa. Pesco por lazer. Sou aposentado, dá pra viver. Agora é viver a vida.

 

ET - E como foi que o sr. conheceu a Maria Aparecida aos 59 anos? Foi em São Paulo?

Nenê - Não. Ela é daqui, da região do Soberbo. Eu conheci a Cida depois que a mamãe faleceu, em 1982. Eu havia comprado um terreno da minha tia, aqui perto de casa, mandei construir uma casinha e a Maria Aparecida alugou a casinha. O quintal era cercado com arame e eu comecei a ficar de olho...

 

ET – Até que um dia você pulou a cerca (risos)... no bom sentido, claro.

Nenê – Naquela idade? (risos) Eu passei entre os arames... (risos). Casamo-nos em 1986, no dia em que o Zico errou o pênalti da Copa do Mundo, no México. Nosso casamento na Igreja foi na hora do jogo das quartas de final. Aos 30 minutos do segundo tempo, Zico viu Joël Bats, da França defender o penal que daria a classificação à seleção canarinho, mas a França ficou em terceiro lugar. A Argentina foi a campeã, a Alemanha ficou em segundo. Tem umas coisas na vida que a gente nunca esquece. 

 

ET - Nenê, hoje,  aos 82 anos, forte,  saudável, a vida valeu a pena,  não?

Nene - Só valeu e vale. Agradeço muito a Deus, pelos meus pais, por ser sadio, .  Não uso nem óculos e enxergo tudo. A força que  eu tenho vem de Deus. Se tivesse que recomeçar faria tudo novamente, do mesmo jeito. Lembro-me daquilo tudo que papai me ensinou na escola e na vida, enquanto convivi com ele.