Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Irmã Gracinda deixa na cidade grande obra

A religiosa portuguesa, Irmã Gracinda Piedade Alberto, da Congregação de São José de Cluny, deixa Sacramento, no próximo dia 7 para retornar às suas origens, depois de 38 anos que deixou sua aldeia natal, Bajouca, em Portugal. Durante essas quase quatro décadas a cada dez anos, mais ou menos, recorda ela, retornou em visita à Europa.

Natural de Leiria, onde fica a aldeia Bajouca, próxima ao Santuário de Fátima, irmã Gracinda, a caçula dos oito filhos de Manuel Francisco Alberto e Olinda da Piedade, perdeu o pai quando tinha apenas três meses.

E ali, naquela pequena e piedosa aldeia, ela viveu, cresceu, recebeu os poucos estudos da época e, sobretudo, ali recebeu o chamado de Deus e ingressou na Congregação.

Era o ano de 1957 de Nosso Senhor Jesus Cristo... Prá contar a sua linda história, Ir. Gracinda recebeu os repórteres, Maria Elena de Jesus e Walmor Silva para quase duas horas de entrevista.

ET - Irmã, vamos voltar um pouco no tempo, lá pelos idos de 1938, 40. Você foi criada pela sua mãe e os irmãos mais velhos. Conta um pouquinho dessa fase.
Ir. Gracinda - Por causa da doença do meu pai, a tuberculose, ela teve que trabalhar e gastar muito e ficamos em dificuldades. Tínhamos bastantes propriedades, mas mamãe não quis vender nada. Papai tinha um comércio de louças finas e tinha uma empresa de retirar resina, tinha muitos empregados, mas um dos empregados "chefes", tirou-nos quase tudo, roubou o dinheiro. Mamãe ficou com muitas dívidas e não foi fácil. Tive uma infância muito sofrida, a minha irmã, Conceição, de seis anos, foi quem cuidou de mim, enquanto mamãe e os irmãos iam trabalhar. E graças a Deus não fiquei com nenhum trauma por isso. Cresci forte saudável, porque a minha família é muito religiosa, aliás na família há muitos sacerdotes e religiosas, primos, primas, sobrinhos, sobrinhas, mas isso é comum nas famílias, lá.

ET - E os estudos?
Ir. Gracinda - Quase nada na minha infância e adolescência... Eu estudei depois de freira... Quando eu entrei na escola, lá na Bajouca, naquele tempo não era obrigatório, fui até a 3a série, mas um dia a professora me bateu muito, porque eu não sabia fazer umas contas (risos). Mas também era uma professora só pra muitos alunos, de todos os tamanhos. Não havia carteira pra sentar, a gente tinha que levar um banco. Eu repeti a 1a série, passei pela segunda e cheguei à terceira série... Quando ela me bateu, fui pra casa a chorar e disse que não voltaria mais à escola. Minha mãe disse que iria na escola no outro dia. Aí fiz uma promessa pras almas do purgatório, que eu daria dez tostões para a Igreja, se minha mãe não fosse à escola. E ela não foi lá, e eu tive que juntar os tostões pra pagar a promessa. Mas eu não voltei pra escola. Eu entrei no convento apenas com a 3a série, sabia apenas ler e escrever um pouco. Mas eu lia muito, lia tudo o que via pela frente.

ET - Antes do convento, irmã. Você saiu da escola e foi fazer o quê?
Ir. Gracinda Fui trabalhar com minha mãe, já estávamos controlados, possuíamos propriedades, ali plantávamos milho, verduras, e comíamos daquilo que colhíamos e fomos vivendo.

ET - Como foi o tempo de mocinha, adolescente...
Ir. Gracinda - Ah! Eu era uma menina muito peralta, aliás ainda sou (risos). Eu fazia coisas que hoje dou risadas de lembrar. Eu brincava com a turma toda, mas brigava também. Tinha uma vida normal, tive muitos pretendentes, mas nunca me interessei por ninguém, também eu era muito nova. Tive o primeiro chamado de Deus aos 15 anos, mas foi uma coisa ligeira que porém não saiu da minha cabeça. Eu pertencia à Ação Católica e trabalhava na Prejac, tipo grupos de jovens no Brasil. Nessa época, até teve um rapaz que queria porque queria casar-se comigo. Aí me escondi dentro de casa e passei a ler... Lia, lia e dentre as leituras li as aparições de Fátima. Acho que nessa época tive a minha
conversão. Eu tinha 17 anos, nessa época, e tive o primeiro convite para ir para a Congregação de São José de Cluny. Hoje eu entendo que o meu despertar para as coisas de Deus foi aos nove anos, quando estávamos a brincar "a malha", uma brincadeira do tipo esconde-esconde, e veio um garoto...

ET - Como foi essa história?
Ir. Gracinda - Foi um fato misterioso. Ele chegou... Ficamos a olhar pra ele e logo ele pediu pra brincar e veio brincar com a gente. Dissemos que ele iria "a mochar" (contar). Ele começou a contar e todos ficamos parados ali perto dele, ninguém se escondeu. Quando ele se virou, ficou espantado e nos perguntou, que dia era aquele. E ninguém sabia, aí ele disse: 'hoje é o dia em que os inocentes morreram por causa de Jesus'. E aí ele me apontou e a mais três e disse: 'tu e mais três sereis religiosas e ireis pra longe pregar o evangelho'. Ele disse isso e sumiu. Ficamos surpresas. E aquela previsão se cumpriu, nós três somos freiras. E hoje, analisando a minha vida, vejo que de fato evangelizei.

ET - Por que a opção por São José de Cluny, uma congregação francesa?
Ir. Gracinda - Na Bajouca já havia uma irmã da Congregação, um dia, passando as férias por lá, perguntou-me se eu queria ir. No momento, eu tive medo, tive medo de não gostar, de não ficar e depois passar vergonha. Só ingressei no convento aos 19 anos. Fui para o Porto, depois Braga (Norte de Portugal), onde fiquei quatro anos. Depois fui transferida para Lisboa, onde fiquei por três anos. Quando completei 30 anos, recebi a obediência pra vir para o Brasil. Um ano antes eu havia perdido a minha mãe.

ET - Sem ter muitos estudos, apenas com a terceira série, como a senhora se tornou freira?
Ir. Gracinda - Naquela época não era exigido. Mas no noviciado me obrigaram a fazer a quarta-série, aí tirei de letra...

ET - Gostei do 'tirei de letra'... (risos)
Ir. Gracinda - Sim, porque eu lia muito. No convento a gente estudava na área religiosa. Estudávamos a história da Igreja, o catecismo Boulanger, as histórias dos santos e santas e fazíamos cursos de catequese. Hoje é tudo muito diferente, diferente mesmo, mudou muito o ensino do tempo que eu ingressei.

ET - Veio com 30 anos para o Brasil, e sai agora depois de 38 anos... Ih, descobrimos sua idade!! (risos). Mas conta um pouco dessa época.
Ir. Gracinda - Eu cheguei ao Brasil no dia 25 de janeiro de1968, oito anos após a chegada da Congregação ao país. Fui para Marília, onde permaneci durante 20 anos, ali fui trabalhar nas obras da Congregação, fazia um pouco de tudo, nas creches, na paróquia, na Diocese, grupos de teatro, grupo de jovens e, paralelamente, fui estudar. Ingressei no Senac, que ainda tinha o Ensino Fundamental, onde concluí o Colegial. Depois ingressei na Universidade de Marília (Unimar), no curso de Assistência Social. De Marília, fui para Paranavaí, no Paraná, lá fiz outra faculdade, de Terapia Familiar e vários cursos de extensão.

ET - Por falar em Paranavaí, o povo de lá fez até promessa pra você permanecer na obra, não foi?
Ir. Gracinda - Não foi bem assim, não. Eu cheguei lá em 1988, com a casa para fechar, com apenas 29 crianças. A casa estava um caos, dívida até com a conta de água, mais de dez anos de INSS atrasado. Se não pagasse a casa iria a leilão pra pagar as dívidas. A casa de Paranavaí recebia todo tipo de criança, até menores infratores, a juíza de lá mandava pegar as crianças a força. Eram duas casas, uma pra menina, outra pra meninos. Eu cheguei e levei um susto, não tinha nem comida direito. Na verdade, a casa era um depósito de crianças em péssimas condições. Ali se prostituíam, brigavam...

ET - Mas como a senhora chegou lá?
Ir. Gracinda - A congregação tinha vontade de ir para o Sul, um dia, uma de nossas irmãs encontrou o diretor da casa, ele era um Pastor protestante, e pediu pra irmã ir pra lá ajudá-lo. As irmãs foram visitar a casa. Eu e mais duas irmãs recebemos obediência para ir para lá administrar o Lar Escola das Meninas e o Lar escola dos Meninos, que de lar não tinha nada e nem de escola.

ET - Então a senhora veio reforçar o ditado de que a pessoa certa tem de estar no lugar certo e na hora certa? A senhora reverteu a situação?
Ir. Gracinda - Graças a Deus. A minha maior preocupação ao chegar lá foi dar dignidade pras crianças. Era uma área muito grande, sete alqueires, mas só de mato. Havia no prédio cinco cadeiras, não havia um lavatório para lavar as mãos. Pra comer, as crianças sentavam-se numa mesa de tábuas e bancos rústicos pra comer o pouco que tinha. Aí, arregaçamos as mangas pra socializar as crianças, amá-las como seres humanos. A casa era muito mal vista, de má fama. Os meninos e meninas de lá eram chamados de 'maloqueiros'. Aos poucos, foram melhorando, mas levou uns três anos. Eu saí em busca de ajuda pra alimentar as crianças. Um dia ganhamos três vacas, colocamos na área do lar, só que elas fugiram, porque não havia cerca. Mas, aos poucos, passamos a ter acesso com as pessoas ricas da cidade, que foram acreditando na nossa proposta de trabalho e começaram a nos ajudar. O prefeito passou a nos ajudar. Naquele tempo, não havia muito esse negócio de verbas da união, do estado, do município. Não era lei, mas o prefeito ajudou muito. E teve um fato curioso, no final de 1988, Nossa Senhora de Fátima foi visitar a cidade, a comunidade portuguesa se reuniu para receber a santa e viram a miséria do lar. A primeira coisa que eles fizeram foi fechar toda a área pra nós. Dividiram os pastos em piquetes e colocamos vacas lá... Plantávamos verduras, as crianças ajudavam a cuidar, vendiam e tinham participação nos lucros, passaram a ganhar o dinheirinho delas. No final do terceiro ano de trabalho, conseguimos inaugurar a reforma da casa, um salão grande, salas de aula mobiliadas. Aos poucos fechamos a área ao redor da casa com muros. E mais tarde construímos a Igreja. Hoje a casa de Paranavaí é linda, linda, com muitos jardins, pomar. É um cantinho do céu, lá.

ET - Algum fato pitoresco dessa época?
Ir. Gracinda - Pitoresco, não, tristes. Há um fato que eu nunca vou me esquecer. Na casa morava um casal pra tomar conta das crianças há trinta anos, mas não fazia nada. Por outro lado, a diretoria da casa nunca depositou o Fundo de Garantia dos dois, nem nada. Quando pedimos pra ele sair da casa, ele jurou nos matar, aí colocamos nas mãos de Deus. Mas lamento muito por alguns jovens que viveram lá, que não deram em nada, não conseguimos recuperá-los. Eles já eram grandes, rapazinhos, se envolviam em brigas. Uma vez, um chegou lá com o colega com o crânio à mostra, por causa de uma paulada. Um arrancou a orelha do outro com uma mordida. Eu tinha vergonha, porque estávamos lá há um ano e não havíamos conseguido recuperar alguns. Aos poucos, fizemos um trabalho e os devolvemos pras famílias. Depois, não aceitamos mais menores infratores. Depois de alguns anos em Paranavaí, o bispo foi a Lucélia pedir pra eu ir montar uma outra casa, que antes tinha sido um manicômio e passaria a ser uma creche. Aí dei uma assistência pra montagem da casa. Fiz o projeto do meu jeito. Com muito verde, muitas flores, tudo muito limpo, organizado e tudo o que existe lá hoje está do jeito que eu projetei.

ET - Quanto tempo a senhora ficou por lá?
Ir. Gracinda - Fiquei em Paranavaí nove anos, que é o tempo máximo da Congregação. O povo não queria que eu saísse, o povo foi a Lucélia pedir, mas, eu já estava em obediência pra vir pra Sacramento. Foi muita choradeira, missas de despedidas. Cheguei a Sacramento em 23 de março de 1997 e cá estou há nove anos, e agora, arrumando as malas pra ir embora.

ET - Nesses anos todos no Brasil, como ficou a família além-mar? Teve novas vocações na família?
Ir. Gracinda - Somos seis irmãos ainda, mas sobrinhos, sobrinhas e primos tem demais, já perdi c conta. E as vocações foram surgindo. Tenho duas sobrinhas e uma prima freiras de clausura, um sobrinho Capuchinho, que vive há dois anos no Timor Leste, dois primos padres, um deles faleceu na África, de acidente, e uma prima na congregação de São José de Cluny.

ET - O trabalho aqui foi diferente do de Paranavaí...
Ir. Gracinda - Antes de eu chegar aqui, outras irmãs já haviam administrado a Creche S. Vicente, irmãs Mafalda, Juliana, Maria dos Anjos, Laura, Célia, aí eu cheguei. Eu vim pra trabalhar na creche. No início, eu tinha três opções, Sacramento, Lucélia ou Marília. Mas eu não quis fazer a escolha e me mandaram pra cá. Eu não sei por quê, mas não queria vir pra cá, apesar de as irmãs elogiarem muito a cidade. Mas como não fiz a escolha, aceitei a decisão da superiora. No primeiro ano, sofri muito, custei a me adaptar, só não sei por quê. E cá estou há nove anos. O início não foi tão duro quanto em Paranavaí, mas não foi fácil. Não havia dinheiro, tudo era muito controlado, mas arregacei as mangas, porque quando quero alguma coisa, vou atrás e faço. E aos poucos comecei, o resto veio por acréscimo.

Continua na próxima edição