Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Alcebíades Scalon 90 anos, juventude a toda prova


Alcebíades Scalon, nascido na fazenda Babaçu, o sétimo filho de Alexandre Scalon e Marieta está prestes a completar 91 anos (13 de julho) e mostra que está no 'auge da juventude'. Não usa óculos, ouve como ninguém e, todo faroleiro, dá provas de uma lucidez incrível. Brincalhão, contou-nos 'causos' da vida e do trabalho, ao lado da mulher Laura e dos filhos Alice e Fausto.
O nome de todos os irmãos veio à tona no início da conversa: "meus irmãos eram Rosa, Guilherme, Vitória, Anselmo, Ariston, Eucádio, eu, Adélia, Alexandre, Armando, Aldemar. Éramos muitos irmãos, uma família grande, mas naquele tempo era assim, hoje só resto eu", recorda com uma ponta de tristeza. Zeloso com seus documentos, inclusive notas promissórias não recebidas, Alcibíades mostra a carteira de motorista, tirada aos 14 anos, exatamente no dia 20 de junho de 1929, assinada pelo delegado, Germano Fraga, e pelo procurador, Antonio Marchi Augusto. Até bem pouco tempo era a carteira que apresentava aos policiais rodoviários que o abordavam muitas vezes com a caminhonete cheia de trabalhadores rurais que transportava para a fazenda, quase que diariamente, meio de madrugada.
Com carinho, fala dos filhos Suely (falecida), Neide, Ricardo (falecido), Leila (João Sampaio), Maria do Carmo (José Arthur), Alexandre (Zuleica), Alice, Humberto (Sonia), Ivone (Paulo) e Fausto, que lhes deram 19 netos e oito bisnetos. Vamos ao descontraído papo que aconteceu em uma bonita e espaçosa sala de sua bela casa, com os repórteres Walmor e Maria Elena.

ET - O Sr. nasceu na Fazenda Babaçu e depois veio pra cidade. Conta um pouco dessa época.
Alcebíades - Nasci na fazenda Babaçu, mas mudamos pra cidade quando eu tinha quatro anos. Em 1921, entrei no Grupo Escolar, depois fui para o Liceu e estudei até me formar em Contabilidade. Lembro dos meus colegas e professoras do grupo: o Jorge Castanheira, Felipe Name, Alberto Vieira, Viriato Araújo, Leônidas Afonso, e muitos outros. Naquele tempo foram minhas professoras, Nazinha Venites, Corália Venites, Pequitita Venites, Sarah Afonso. Lá no Liceu os donos eram Furtado Medeiros, Idelfonso Teixeira. Eles eram donos do Liceu e professores. Mas havia outros, como os padres Julião e Pedro Ludovico... Depois, prestei provas em Ribeirão Preto e recebi o diploma de Contador, em Uberaba.

ET - Quando o Sr se formou foi trabalhar de contador?
Alcebíades - Não, eu trabalhava de chofer de caminhão. O caminhão era um Chevrolet do meu pai. A gente fazia , transportava até cadáveres da roca para o cemitério. O cemitério já era onde é hoje, tinha o cemitério velho (onde é hoje o CRES, a madeireira Casarão e a creche Alexandre Simpson), mas ele não funcionava mais. Eu nunca trabalhei de contador, depois do caminhão fui para o comércio.

ET - Quando o sr. era rapaz, onde vocês se divertiam?
Alcebíades - Tinha muito baile, tinha o cinema Recreio, na av. Benedito Valadares e logo pra baixo tinha um clube, onde mora a dona Alzira, do Zé Pandó. Eu namorava muito, mas só as moças mais velhas, pra num casar. Namorei muito e dancei muito.


Alcebíades Scalon dando entrevista em sua casa; foto clássica no dia do casamento com Laura e hoje com a esposa em sua bela casa

ET - É verdade que vocês 'aprontavam' todas no cinema?
Alcebíades - Não, não era assim não. O Arimondes Goulart cobrava entrada dos meninos, porque ele dizia que a gente ocupava as cadeiras do mesmo jeito. Então, o Paterson Peiró organizou uma greve da meninada. No dia seguinte, todos os meninos foram para o cinema levando ovos. Nem a polícia chegou, era ovo pra todo lado. Depois, a gente passou a assistir aos filmes pela janela. Tinha um muro muito alto, a gente pulava o muro e ia prá janela. E tinha o Zé Bernardo, fabricante de foguete, que ficava lá vigiando. Um dia, ele nos viu e fechou as janelas. Daí a pouco ele abriu uma janela e pôs o chapéu no peitoril e ficou lá. O Asdrúbal foi devagarinho, pegou o chapéu e besuntou a carneira (dobra da parte interna) do chapéu de cocô, e botou lá de novo (risos). Daí a pouco veio o intervalo do filme, quando a gente se misturava no meio do povo e tomávamos conta do cinema. Quando vimos, o Zé Bernardo estava num cano d' água lavando a cabeça e o chapéu (risos).

ET - Naquele tempo as pessoas se casavam muito jovens. Vamos falar um pouquinha da dona Laura?
Alcebíades - A Laura tinha treze anos, quando a conheci. Ela morava em Franca. Ela era uma moça bonita, cabelo pretinho, tinha saído do colégio. Mas o pai dela era ciumento, proibiu-a de vir aqui por um ano. Depois nos encontramos numa festa junina na fazenda. O Dr. Juca deu uma forcinha e casamos em 1940. O escrivão era o Jovino Brigagão. O casamento civil foi no Hotel do Comércio e o padre Pedro Ludovico Santa Cruz celebrou o nosso casamento, na Igreja Matriz, durou uma hora e meia. Eu estava com 26 anos. Fomos para o hotel Colombo, em Araxá. Depois viemos morar na Capitão Ferreira e de lá mudamos pra essa casa aqui. Naquela casa nasceram os nossos filhos todos, menos a Leila que nasceu em Conquista. Fomos passear lá e a Leila nasceu.

ET - Com essa idade, o sr. passou pelas revoluções de 30 e 32, no Brasil, e pela 2a guerra mundial. O sr. chegou a participar como soldado desses conflitos?
Alcebíades - Não fui convocado para nenhuma, mas já levei dois tiros. Na revolução de 30, prenderam os caminhões todos para ajudar no transporte de soldados e mantimentos, mas o Dr. Juca e o papai, conseguiram liberar dois caminhões pra levar o café limpo pra Almeida Campos, de onde ia pra Angra dos Reis. Fiquei trabalhando em um desses caminhões. O povo foi tudo pras roças, de medo.

ET - Como foi a história dos tiros?
Alcebíades - O primeiro foi aqui no braço, eu mesmo disparei. Estava na beira do rio Grande com os meus primos, Fioravante e Sérgio, eu mexendo com a cartucheira, quando ela disparou, a bala pegou no braço e atravessou do outro lado. O outro tiro foi na barriga, o meu primo, Aurélio errou a caça e a bala me acertou na barriga. Acho que não morrerei de bala, não (risos). Mas eu gostava demais de caçar e pescar, hoje é proibido.

ET - Dizem que a gente fica rico em três oportunidades: trabalho, sorte ou se casando com uma mulher rica? Como o sr. conseguiu juntar sua fortuna?
Alcebíades - Com os três, com muito trabalho, sorte e casando com uma mulher rica (risos). Eu trabalhei com comércio durante 30 anos. Tinha uma mercearia, na Benedito Valadares (a casa já foi demolida), depois passei para a Casa Mogico, com o comércio de queijo. Depois é que passei para a pecuária. Uma parte da fazenda foi herança da mulher e comprei o resto (Uma na Conquista, uma na Tiborna, uma na Pedreira, uma no Soberbo e a outra no Brocotó). Hoje eu tenho cinco fazendas, mais ou menos uns 900 alqueires de terras. Sempre mexi com gado de corte, nunca plantei lavoura, eu arrendava terra para plantio. Até dois anos atrás era eu que administrava, agora é o Humberto. Também com 91 anos, não dá não.

ET - Há uma moda de viola muito bonita, do Índio Vago e Nonô Basílio, que fala das viagens de boiada de antigamente... Dizem que o sr. já levou muitas boiadas até Barretos. O sr. ia como peão?
Alcebíades - Eu ia de ximbica, o gado era tocado a pé. Levavam-se dias, mas eu ia de carro. Naquele tempo, o pessoal levava até oitocentos bois. O maior comprador era o frigorífico Anglo. O Antenor Duarte, fazendeiro de Sacramento que morava em Barretos, também comprava, mas a boiada prá ele tinha que ser magra. Ele acabava de engordar e vendia. Levei também porcos...

ET - 'Boiada' de porcos... (risos) Claro, não iam tocados?
Alcebíades - Naquela época não se usava óleo vegetal, era só manteiga de porco.Eu não criava porcos, comprava e vendia para a Swift. Uma vez fui lá vender porcos e eles me mandaram conversar com os ingleses e eu fui. Naquele dia tomei uísque Cavalo Branco e um deles disse que eu tinha uma 'boiada' de capados, porque eram 500 porcos. Mas os porcos iam de caminhão, viu.

ET - Nessas lides, o sr. deve ter muitas histórias?
Alcebíades - Se tenho... tinha um cliente chamado Nestor Castro Alves, ele era solteirão, morava em Araxá, mas vinha pra fazenda e amasiava com a mulher de um dos vaqueiros, a Jandira. Havia também um vaqueiro que ficava com ela, sem conhecimento do nestor. E um terceiro, que tocava uma lavoura de café, que também tirava uma casquinha. E assim ficou, sem o conhecimento do marido de Jandira. Até que um dia, eu fui lá comprar queijo, o Nestor chegou e o primeiro vaqueiro disse: 'Seu Nestor, tenho uma coisa pra te contar. A Jandira está traindo nóis'. E foi um riso só. (risos)

ET - O Sr. sofreu muito calote no comércio de gado? Tem uma história da 'Tablita', no tempo do Collor. Como foi a história?
Alcebíades - É, o caso da 'Tablita', levei um calote, mas dei o troco. O cara me comprou o gado e não falou nada de tablita, e na hora de pagar, ele descontou a tablita. Pensei comigo, 'está bem'. Telefonei, avisando que tinha um outro gado e que mandassem o dinheiro prá pagar o ICMS para eu despachar a boiada. Quando o dinheiro foi depositado, eu retornei o telefonema e disse: 'Esse dinheiro é pra pagar o que vocês estão me devendo da tablita', e não mandei o gado. Devolvi o calote, mas perdi o comprador.

ET - E a história do Abdala, sogro do Paulo Maluf, lembra?
Alcebíades - É, as pessoas não me passavam a perna muito fácil, não. O José João Abdala, sogro do Paulo Maluf me comprou uma boiada e não pagou. Ficou me enrolando. Um dia, ele falou que ia pagar, fui pra São Paulo e fiquei na casa dele 11 dias, esperando o dinheiro de 800 bois. Não deixei a casa até que ele me pagasse. (risos).

ET - Tem também a história do Coselli, de Ribeirão Preto...
Alcebíades - É, essa é boa. A gente levava queijo pra Coselli, em Ribeirão Preto. O Adriano Coselli era muito velhaco, mas tinha o Zé Aleixo que trabalhava comigo, velhaco e meio. O Coselli sempre roubava no peso e o Aleixo, que carregava as pilhas de queijo do caminhão pra balança, e dali para o depósito. E quando o pessoal não estava olhando, ele não levava para o depósito, voltava para o caminhão e trazia novamente pra pesar. (risos). O Coselli era velhaco, mas nós éramos velhacos e meio, pesava duas vezes o mesmo queijo.

ET - Mais uma, lembra?
Alcebíades - Tem a historia da D'Pascoal. O meu caminhão estava com os pneus muito velhos e o Donato Pascoal, pai, porque tem um filho com o mesmo nome, pegou meu caminhão prá consertar os pneus e, na verdade trocou todos, colocou tudo novo e tive que pagar. Mas demorei, fui pagando aos poucos... (risos). Eu não mandei trocar.

ET - E na política, o sr. mexeu com política alguma vez?
Alcebíades - Nunca gostei de política, tinha amizade com políticos. Até com o Juscelino Kubistchek. A minha filha Alice, era miss, chegou até a dançar com ele. Uma vez o JK esteve aqui em Sacramento, fui lá no aeroporto. Hoje estou assistindo à minissérie.

ET - Qual o segredo pra chegar aos 90 anos com saúde, sem óculos, com boa audição, boa memória?
Alcebíades - Nossa senhora! Não sei dizer, mas acho que é a gente ser correto com as pessoas. Nunca fui de beber, gosto de uma cervejinha, fumei muito pouco, gosto de comer quando tenho fome, mas tem umas outras coisas, também, acho que é isso. A idade vai acabrunhando a gente, mesmo que a gente não queira, o tempo nos destrói, acabam as forcas, a resistência, mas vale a pena viver a vida. Não há nada de que eu tenha me arrependido. Valeu a pena sempre.

ET - O Sr. não ensinou o pulo do gato. Que ‘outras coisas’ são essas? (risos)
Alcebíades - Ah!... Deixa prá lá... (risos)

ET - O Sr. disse uns versinhos, ainda há pouco. Anda repetindo ainda os versinhos?
Alcebíades - Não sei de quem são os versos, mas sempre que encontro uma mulher bonita, recito esses versos: 'Se Deus é grande,/ grande é a fé/. O esposo de Maria é são José / e que o diabo foi grande/ como ainda é. / Mas maior que tudo nesse mundo/ é a chifrada dos 'ói' de uma 'muié'.

ET - E quantas vezes o sr. já recitou esses versos? (risos)
Alcebíades - Ihh!!, Já perdi a conta (risos). O poeta pôs a mulher acima de tudo, mas eu não sei quem escreveu. Sei os versos desde rapaz.

ET - Foi um prazer conversar com o Sr.
Alcebíades - De quem você é filha? (perguntando a repórter Maria Elena)