Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Viagem Definitiva

Edição nº 1179 - 13 Novembro 2009

“Seu Pedro”, como ficou conhecido, caraterizou-se pela bondade ímpar dedicada a todos. Com outros operários trabalhou anos a fio na edificação do grande Seminário do virtuoso Pe. Antonio Argüido com a contribuição dos paroquianos e arrecadação de festas e movimentos religiosos.

O mistério do cessar da vida orgânica permeia a efêmera existência das criaturas entretidas no desafio de viver. Aos poucos é dado o poder da premonição do derradeiro momento. Ainda bem, murmura o único animal que sabe e conhece a precariedade da vida terrena. A morte na cultura ocidental nunca é bem vinda, e a sua naturalidade é ignorada e repelida como algo mórbido e incômodo. A boa morte torna-se um paradoxo. Entretanto, existem seres humanos que, inexplicavelmente, se preparam para o termo infalível das criaturas vivas.

Essa graça divina tornou-se a conquista de um hortelão de Passa Perto. Ele tinha o nome do apóstolo Pedro e fez por merecer o galardão dos justos.

Quando o Pe. Antonio construiu o Seminário do Ssmo Rentor trouxe Pedro da ribanceira do rio das Velhas o para o Passa Perto.

De recente viuvez viera com três filhos, morar numa pequena casa, marco inicial da construção nas terras de cerrado do Leônidas Afonso. Acolhedor e agradável, “Pedro” era o protótipo dos habitantes das áreas rurais do Passa Perto. Encarnava o espírito religioso de devoção à família de Nazaré: Jesus, Maria e José. Os personagens da Epifania bíblica, reverenciados na folia de reis, de tradição centenária na cultura e na religiosidade passapertense, tinham um lugar especial na vida de “seu Pedro”. 

 Na frase musical originalíssimo coral da folia, lhe fazia a segunda voz na repetitiva cantoria popular de autêntico sentido cristão. Com outros operários trabalhou anos a fio na edificação do seminário, feito da arrecadação de festas e movimentos paroquianos.  

“Seu Pedro” conseguiu, como ajudante de pedreiro, ver a sua conclusão. 

Finalizada a obra, retornou à suas origens como trabalhador da terra, cultivando-a para o sustento dos aspirantes à vida religiosa dos padres redentoristas. A auto-suficiência da cozinha era a sua função na comunidade religiosa. Suprida a despensa da cozinha, a fartura de alimentos permitia, por alguns trocados, que as pessoas pudessem levar parte substancial da produção de couve, alface, salsa, cebolinha, rúcula, agrião e hortaliças da época como milho verde, jiló e pimentão. A freguesia tornava as manhãs alegres e barulhentas de farturenta colheita.

Nas terras do Passa Perto a água brota dos vales pedregosos sulcados na serra de basalto decomposto, terra de vermelha nódoa quando molhada e substrato das lavouras férteis e produtivas espalhadas nas vargens. Verduras de milenar seleção nascem dos canteiros basálticos, de esterco curtido do estrume de gado, fertilizante natural de decomposição orgânica. Profusão de hortaliças de viçoso transplante. Caules aéreos suspensos nos estaleiros de bambu, tirados na lua minguante, sustentam liames de pepinos e abóboras trepadeiras. Chuchus hidratados despencam nos recantos sombreados, ásperos pedúnculos brotados no húmus de folhas abandonadas em decomposição.

Restos orgânicos trespassados de grossas minhocas e de infinita fauna e flora microscópica asseguram a fertilidade da terra naturalmente cultivada sem o artifício da química agrícola. No canteiro artesanalmente preparado vegeta repolho e almeirão. Tinha alface de cores verde-escuro ao amarelo esbranquiçado das folhas restolhadas boiando na caixa d'água após a colheita matinal. Três pés firmemente amarrados para serem transportados. Tomateiros de folhas necrosadas oferecem frutos maduros na mesma penca de verdolengos tomates. Pseudo caules amarrados com embira escalam a cerca de arame liso. Berinjelas, quiabos e amargas jurubebas dividem espaço com leguminosas vagens estufadas pelo vigor da terra e do gotejamento drenado às raízes. Hortaliças e ervas daninhas amparadas no esterco curtido retirado do monte à sombra da secular mangueira, disputam a claridade. Canteiros e adubadas covas se estendem à beira da voçoroca onde, na pocilga, porcos modorrentos aguardam inquietos o repasto dos carurus e beldroegas carpidas nas entrelinhas do espaçamento permitido no plantio.

Em cada recanto da horta a presença das mãos rudes de Pedro Atanázio. O tempo consumido de cócoras na separação de verduras e ervas daninhas estirpadas.

Folhagens regadas nas madrugadas frias, removendo o orvalho com o esguicho da água farta e suficiente para a sobra no cocho das galinhas, porcos e coelhos, fontes da proteína animal adquirida com a sobra da horta e do milho colhido na seca. Cadeia alimentar sustentada com terra, água e suor. Espaço de crianças correndo com manga nas mãos ou na expectativa de laranjas e mexericas temporãs. Pródigas bananeiras na contenção do solo, revelam na tulha cachos granados postos a madurar debaixo do saco de aniagem.

No crepúsculo, novamente a terra antes sedenta, após a rega deixa escorrer barrento enxurro entre as linhas plantadas. Cessa o burburinho de gente transitando entre os canteiros, os animais tratados silenciam após o repasto deixam sobrar o cãs abóboras e sabugos com debulhados grãos aqui e ali.

O lidar constante fez dos anos momentos breves, relâmpagos no céu da existência. O tempo passou... Os anos frutificaram as vocações... concepções se alternaram na trajetória do seminário. A comunidade levedou outras tantas. No limiar das décadas a horta foi sufocada pelas árvores e tornou-se capoeira. Compulsoriamente aposentado “Seu Pedro” conheceu o ostracismo amenizado no convívio da nova família adquirida com o segundo casamento. Filhos, noras, netos, mostram ainda mais a exigüidade do temo. A doença postergada nos últimos parágrafos do livro da vida chegou para ele, inexorável. Breve internação na Santa Casa de Misericórdia do Município de Sacramento. O conforto de um quarto limpo, a atenção de médicos e enfermeiros. Alguns dias prolongados no tratamento alopático, na assepsia hospitalar, sustança do soro endovenoso e visitas derradeiras, com intervalos para oração diária do terço recitado em voz alta, murmurações intercaladas de expressões incompreensivas: A mesma dificuldade que ele tinha em pronunciar as palavras brócolis, aspargo, abóbora no tempo da horta. Irrelevância para o trabalhador da terra, de humildade franciscana. Encantamento da simplicidade diante da complexidade do mundo. O terço mariano era o seu refúgio, sua fortaleza, seu abandono no poder da fé: 

 - Não estou me sentindo bem, num murmuro para a enfermeira que colocou o rosário nas suas mãos de calos crônicos. Sentou-se escorado no travesseiro. Fez o oferecimento e a dedicatória.

 - para as almas do purgatório... imaginou os cânticos preparatórios na impossibilidade de cantar. Alegria íntima, serenidade autêntica.

 - Primeiro mistério... glória ao Pai, ao Filho, ao Espírito Santo. Saudação à Santíssima Virgem.

Seu coração acelerou os batimentos, depois diminuiu. As pernas estiradas ficaram dormentes com um leve formigamento. O rosário bambeou-lhe das mãos, não mais sentiu as contas do terço entre o indicador e o polegar. Entretanto, percebia o sentido da Ave Maria. Ao pronunciar o nome de Jesus sentia o coração no compasso da palavra e do pensamento. Parou de balbuciar. As pupilas se dilataram nos olhos fechados. Ouvia a oração. Imagens extremamente claras ocuparam a dimensão inédita que experimentava. Sentiu correr ao redor da praça do Rosário, o estrugir de fogos na madrugada, as alvoradas das festas religiosas na saída da procissão que aluía do largo da matriz.

Simultaneamente, a percepção do retorno da horta, a cesta cheia de úmidas e tenras verduras recém colhidas: cenouras, beterrabas, couves-flores, berinjelas, alfaces e couves incrivelmente verdes.

Sentiu-se solto, livre, vislumbrou um corpo jovem de intenso vigor; percebeu, estranhamente o contraste com a enfermidade que o levara à internação no hospital num quadro de extrema fraqueza. Sentia tudo... sabia tudo...

Predominância do vigor e da visão de luz. O nome de Jesus continuava ecoando, não mais era o ritmo do coração. Sentiu-se emergir de imenso lago azul, azul, azul... seu corpo de luz intensa foi erguido do leito por imensa mão, também de luz.

Avistou do alto todos os locais em que vivera nos últimos anos. As casas tornaram-se pequenas, o verde das árvores misturou-se num quadro homogêneo do qual seu corpo fazia parte. Em vida tivera esse prenúncio na hidratação do pão eucarístico sobre a língua nas ceias realizadas das missas dominicais. Cristo ressuscitado fizera parte do seu coração, agora ele fazia parte do Corpo Místico de Cristo. Seria isso a verdadeira comunhão? Água, terra, criaturas, passado, presente, futuro... eternidade na certeza do definitivo. Teria morrido? A maravilha do seu estado superava dúvidas e expectativas a respeito do céu.

Num átimo, Pedro escutou lamentações e preces e viu muito longe pessoas retornando do Campo Santo. Quis aproximar-se para ver quem havia morrido.

Porém, o corpo leve demais subia, vencia, despojamento completo, sem retorno convergindo sempre para o alto.

- não precisa liberar o oxigênio, murmurou a enfermeira. O coração do “Seu Pedro” não bate mais.

Fez-se profundo silêncio no quarto do hospital.

 

Carlos Alberto Cerchi