Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Personalidade de 2013: Seu Oscar, de candeeiro a artesão

Edição nº 1347 - 01 Fevereiro 2013

Oscar Raul Cardoso, 72, é daquelas pessoas que dão prazer de serem ouvidas pelas suas convicções, “causos”  e histórias de vida, sofrida, porém muito feliz e bem vivida.  Natural de Campo Belo (MG), Oscar é o filho caçula de Maria Sudária de Jesus e Raul Cardoso, pais de nove filhos.  “A família era grande, não havia televisão antigamente e eu sou o caçulinha”, diz com uma boa gargalhada. Ainda em Campo Belo perdeu o pai, aos sete anos mudou-se para a casa do irmão em Campos Altos, para cuidar dos sobrinhos, mas na verdade foi para o primeiro trabalho: candeeiro de carro de bois... Residindo em sacramento desde 1997, Oscar, a esposa Lúcia, uma filha e três netos moram no Jardim Primavera, um cantinho decorado bem ao gosto do artesão, arte que o fez conhecido na cidade e região. Foi lá, rodeado de peças de madeira, que recebeu o ET e deu vazão às suas  histórias, até terminar rodando no seu som, Luar do Sertão, e afirmando: “Faço isso e fico recordando aquele tempo. Olho para estas coisas e fico imaginando que tudo acabou. O progresso chegou e, moinho, carro de bois, engenho, monjolo tudo foi acabando...”. É seu Oscar, a gente era feliz e não sabia...

 

ET - Seu Oscar, vamos começar sua história lá em Campo Belo...

Oscar -  Sim, nasci, meus irmãos e eu, numa fazenda, e eu e lá vivi até os sete anos. Cheguei a entrar na escola, mas por pouco tempo. Minha escola foi a vida. Meu irmão mais velho, o José, era casado e tinha um casal de filhos e morava em Campos Altos, meu pai já havia falecido,  minha mãe e eu morávamos em Campo Belo. Ele foi lá me buscar dizendo que a mulher dele precisava trabalhar e eu iria cuidar dos meninos. Eu fui e mamãe ficou. Só que era um trambique dele, chegando a Campos Altos eu fui para o trabalho. Ele disse que na fazenda precisavam de um candeeiro, aquele que guia os bois no carro, vai na frente. E eu com sete anos, nunca tinha tido um boi perto de mim, fui  lá pra frente do carro.

 

ET – Então, desde cedo começou a ganhar o dinheirinho?

Oscar - Que dinheiro que nada, eu nem via. Meu irmão é que recebia.  Havia escola na fazenda, mas a gente saia no escuro ainda pra trabalhar. Descalço, com frio, chuva. E a gente trabalhava enquanto tinha claridade. Íamos capinar e enquanto enxergava o mato a gente estava lá. Como é que ia estudar?  Luz elétrica não tinha, a gente chegava cansado, passava uma água nos pés, nos braços e na cara, comia  e ia dormir,  porque quando o galo cantava a gente levantava. Era uma vida sofrida e foi até os 22 anos. Depois meu irmão buscou a mamãe pra trabalhar de cozinheira na fazenda. Não havia fogão a gás. E lá era um fogão imenso, aquele mundo de panela e no final perdeu a visão. Acho que o calor do fogo queimou seus olhos, mas ficamos lá.  Um dia, meu outro irmão, o João Raul esteve lá, viu a mamãe naquele estado de cegueira  e a levou de volta  para Campo Belo. Isso foi em 1960 e eu fui com ela, mas eu havia acostumado com aquela lida, apesar de todo sacrifício. Eu tinha os companheiros do trabalho,  dos bailes e aí eu voltei pra Campos Altos. E depois, meu patrão era muito bom, me ensinou muita coisa boa, me ensinou a respeitar os outros. 

 

ET - O senhor falou aí de bailes nas fazendas naquele tempo. Eles eram famosos, não eram?...

Oscar – Vixe! Se eram!.. Eu tocava muito, a noite inteira. Meu irmão tocava sanfona oito baixos que nem existe mais e eu tocava violão. Era violonista de mão cheia. O poeirão levantava no meio da tolda. Essa arte que eu faço me recorda aquele tempo. O baile começava cedo e ia até o sol raiar. A gente tocava, tocava e de repente lá pela meia- noite, vinha  o dono da casa, o dono do baile, montava uma mesa de tábua imensa e as mulheres com as peneiras de taquara cheias de  biscoito, broa, joão-deitado (massa de broa de fubá, embrulhada em folhas de bananeira e assadas no forno de barro). Era gostoso demais. E atrás da quitanda,  vinham outros atrás com as cafeteiras de café, chá de canela. Era cada biscoito num tamanho,  broa de fubá purinho. Naquele tempo não havia nada falsificado. O pessoal enrolava o cigarro de palha, dava umas baforadas e quando a sanfoninha chiava voltava todo mundo. Era bom demais. 

 

ET - Havia muitos mutirões para limpar roça, não havia?

Oscar -  Você  tá falando da 'treição'?  Isso era uma festa. 'Treição' era quando a gente se reunia pra ajudar um companheiro que estava com a roça no mato ou tinha que roçar pasto. A união era muito boa. Nós, os companheiros,  íamos lá e limpávamos a  roça todinha.  A gente chegava de madrugadinha fazendo festa. Tinha uma música que cantávamos. Eu  não me lembro mais. A gente pegava o companheiro dormindo. Ele acordava assustado e aí a gente caia  na roça. E em casa,  as mulheres já iam acendendo o forno, fazendo massa, botando as panelas no fogo, o povo ia chegando,  porque de noite  havia o baile. Toda 'treição' tinha baile. Hoje fico pensando naquela união, uns ajudando os outros. Eu nunca pensava que o Brasil mudasse tanto. E muda de repente, não dá tempo de a gente  acostumar.  Dá saudade, mas a gente sabe que isso nunca mais vai voltar. 

 

ET - Conheceu a esposa num desses bailes?

Oscar - Não. Minha primeira esposa, Maria  Campeiro era de um arraial chamado de Santana do Jacaré, distrito de Campo Belo. Casei tinha 23 anos e tivemos um filho, Leonardo, que mora em Piumhi, perto de São Roque de Minas. Nós nos casamos e ficamos morando em Santana do Jacaré, trabalhando na mesma fazenda onde conheci a Maria. Ela faleceu em 1982,  aí resolvi sair. Meu patrão era muito bom e arrumou pra mim na prefeitura de Santana, que já era cidade. Na troca de prefeito, vocês sabem o que acontece (risos), ele me mandou  trabalhar no cemitério. Eu disse  que no cemitério eu não queria. Eu falei pra ele: '- Sei que um dia vou pra lá, mas agora, não' (dá uma gostosa gargalhada). E ele respondeu: '- É o que tenho pra você'. Aí eu disse: '- O senhor não tem o serviço, mas eu tenho o mundo'. 

 

ET – Foi quando veio para Sacramento?

Oscar – Não. Peguei a Lúcia, minha segunda esposa, e mudamos pra Uberaba, onde morava meu irmão Lazarino e entrei na prefeitura no final do governo do prefeito Hugo,  depois entrou o  Luiz Guaritá Neto e meu chefe passou a ser  o Dr. Márcio Cunha, uma pessoa maravilhosa, que é aqui de Sacramento, que a gente chamava de Sidney Magal e ele não gostava de jeito nenhum (dá outra risada).  Mas sem estudo,  ganhava só um salário mínimo, que  não dava pra nada. Recebia o salário de manhã, pagava aluguel, farmácia, luz, água, comprava gás e, à tarde, não tinha mais dinheiro. Aí,  resolvi sair e o seu Márcio me deu a maior força, me ajudou muito no acerto e recebi uns trezentos contos a mais. 

 

ET – Com esse dinheirinho foi prá onde?

Oscar - Fui trabalhar em Peirópolis, no tempo do Langerton, Foi um tempo bom, mas eles não precisavam de empregados. Eu fazia alguma coisinha lá  para o Langerton.  E lá em Peirópolis conheci o Suarino, daqui de Sacramento, que foi  fazer uma pintura nas casinhas do centro espírita. Ele  me falou de Sacramento e logo vim pra cá, em 1997. Suarino arrumou pra mim uma casinha na Cohab. A casinha era do doutor Luiz Rodrigues de Souza. Morei lá uns tempos, mas não consegui pagar o aluguel. O Suarino me arrumou um serviço na colheita de café com o Ricardo Crema. E lá fomos,  as meninas e eu para a panha do café e a Lúcia ficava em casa. Aí as coisas começaram a controlar. E  nisso o Dr. Luciano Varanda me arrumou um serviço de jardineiro  no Educandário Eurípedes Barsanulfo, onde me arrumaram  uma casinha na Vila Sinhazinha. Aí fiquei trabalhando na fundação e morando na vila durante 11 anos. As cosias controlaram, porque eu tinha salário e não pagava aluguel.   Ficamos na vila até mudarmos aqui para o Jardim Primavera, que ganhamos do prefeito Joaquim.

 

ET – Ô seu Oscar, até agora não falamos na sua arte, no motivo principal da entrevista, e o Sr. já está com 56 anos...

Oscar – Mas é isso mesmo, eu comecei com artesanato mais ou menos nessa idade, quando fui para Peirópolis. Eu via aqueles bichos, aquelas peças e fui ideando, porque como eu trabalhei com essas coisas e já havia visto muitas, tudo estava na minha memória. Minha mãe todo dia trabalhava no monjolo de quatro pilões, que é chamado de trapizonga. Eu trabalhei com carro de bois. A primeira coisa que fiz foi um carro e aí fui criando e aperfeiçoando, tudo manual, até a furadeira. Depois comprei uma elétrica. Tudo isso funciona movido a água, mas como não tem jeito, eu coloquei motorzinhos, daqueles de aparelhos de som. Sou aposentado, isso é minha distração e ainda ganho um dinheirinho, aí eu  compro a madeira, verniz, pregos, cola... Faço peças por encomenda, também. Mas faço isso mais é para mostrar para os mais novos como eram as coisas antigamente. E o Fred Crema me descobriu e me levou para exposições, assim o pessoal vai conhecendo. Ele me ajuda muito na divulgação, traz as pessoas aqui pra comprar. Devo muita obrigação a ele.

 

ET – Tem aqui muitas peças, réplicas de instrumentos, veículos movidos a tração animal, equipamentos... Mostre aí o que você já fez.

Oscar - Fiz trapizonga, monjolo, moinho de fubá (com todas as peças, inclusive a quarta, peça de medir o milho e o fubá), fiz engenho de cana, carros de bois, palmatória, zorra ou carretão, um equipamento usado para puxar grandes pedras e toras de madeira, descaroçadora de algodão para tear. Nunca fiz um tear, minha avó até trabalhou muito, tecendo, mas não sei bem como é. Vou mostrar pra vocês que cada parte das peças tem nome e serventia. 

 

ET – Fale, então sobre o carro de boi, mais conhecido da gente...

Oscar -  Vamos lá. O carro de boi tem essa peça chamada 'espera', que apoia o carro pra não forçar o pescoço dos bois, enquanto carrega o carro. As outras peças são, 'focinho', onde passa o 'cambão'; 'chaveia', peça de madeira que se encaixa no 'cabeçalho'; o 'pigarro', pedaço  de madeira, fixado na ponta do cabeçalho, para apoiar no chão; 'fueiro', para segurar a carga; 'cheda', laterais que compõem a mesa; 'chumaço', que protege a cheda; 'mestre', vigota que atravessa o carro de ponta a ponta; 'travessão', que trava uma peça na outra; 'recabem',  a traseira do carro; 'azeiteiro', onde coloca o azeite que vai lubrificar as rodas; 'cocão', dianteiro e traseiro, serve para segurar o eixo; 'canistro' ou 'esteira', que segura a carga miúda; 'cavilhas', cunhas de madeira que se introduz entre a cabeça e o 'meião', para que não se escape ao rodar; 'cambota', as duas meias luas, que formam a roda do carro; 'meião', parte do meio da roda; 'oca' ou 'óculos', duas aberturas redondas na roda do carro. 

 

ET – Seu Oscar, você enumerou mais de 20 peças... Quem vê um carro de boi por aí não imagina nunca que contenha todos esses detalhes.

Oscar - E muito mais, cada coisinha tem uma função.  E a gente aprende é no dia a dia do trabalho. 

 

ET - Seu Oscar, como você se sente ao ver essas peças prontas?

Oscar - Levo uns quatro, cinco dias pra fazer um carro, uma trapizonga, muito mais... Eu fico olhando, admirando, recordando os meus tempos de mais moço. E tem dia que faço isso aqui, ó... (Liga o som e coloca uma moda de Tonico e Tinoco em um antigo aparelho de som : “Ó, que saudade do luar da minha terra / Lá na serra branquejando folhas  / secas pelo chão /  Esse luar cá da cidade tão escuro / Não tem aquela saudade / Do luar do meu sertão...”.  Aí ligo essas maquinas e  me sento aqui e fico escutando música, olhando e recordando  aqueles tempos antigos. Aí acaba essa música e começa “Paineira Velha”. Eh trem 'bão'! Vocês nem imaginam. 

 

ET - É uma felicidade...

Oscar – Vixe! Felicidade demais.  A gente passa por dificuldades,  mas vence. Moro em Sacramento há 16 anos, tenho  minha casinha aqui no Primavera desde o final de 2008. Valeu a pena, Sacramento me recebeu bem, a população me recebeu com carinho. Mas o  sofrimento, as dificuldades  ficam guardadas na memória.  E graças a Deus posso contar um pouco da história antiga para as pessoas. Tenho meu banquinho debaixo do jasmineiro de flores brancas. A vida vale a pena. 


ET – É, seu Oscar, os versos de Fernando Pessoa se encaixam bem na sua vida: “Tudo vale a pena,  quando a alma não é pequena”.  Parabéns!