Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Adelina Sandonaide: 80 anos de história e vida

Edição nº 1212 - 02 Julho 2010

 

Nesta segunda-feira, 7, a família Sandonaide/Borges está em festa. A matriarca, Adelina Borges Sandonaide, completa 80 anos rodeada pelos filhos, netos e bisnetos. Filha dos Borges que se radicaram na região da Rifaininha, próxima ao campo de aviação, Adelina conheceu de perto as lides rurais até os 15 anos, quando se mudou para a cidade para completar os estudos, que não passaram do primário. Mas a sua vida foi, como ela mesma reconhece, de muito trabalho e muitas alegrias. Tantas que, só tem que agradecer... Veja a entrevista que nos concedeu ao lado dos netos, Júlio e Vinícius.

 

 

ET – Não é 'Zandonaide', com 'Z', Da. Adelina?

Adelina - Meu sobrenome é com S mesmo. O registro do Zecão, meu marido, estava errado e quando nos casamos, o sobrenome continuou com S e a gente nunca pensou em corrigir. Todos os documentos dele eram Sandonaide, mas é tudo uma família só. 

 

ET – E o seu Borges, de onde vem?

Adelina – Não sei a origem, mas aqui no município somos todos ali da Rifaininha, onde nascemos. Sou filha de Miguel Alves Borges dos Reis e Elisia Borges. De oito irmãos, sou a caçula. O primogênito foi Adelino e a penúltima eu, Adelina. Os outros são Levino, Erite, Osvaldo, Osvaldir, Iracy e Isaura. Sou a sobrevivente da irmandade, meus irmãos faleceram todos muito novos, mas em compensação a descendência é grande. Eu tive irmãos que teve dez filhos.

 

ET – Quanto tempo ficou na fazenda?

Adelina – Morei até os 15 anos na fazenda, onde comecei meus estudos, com o Prof. Braulino. Naquele tempo, os fazendeiros pagavam o professor pra ensinar os seus filhos e os filhos dos colonos. Era menino demais, morava muita gente na fazenda. Eles trabalhavam nas lavouras de café para o papai e todos tinham muitos filhos. Mas a escola era só até o terceiro ano.

 

ET – Hoje os moradores estão fugindo das fazendas com medo da violência. Naquele tempo já era perigoso?

Adelina – Não! Era tudo uma delícia. Tenho sempre boas lembranças desse tempo. Nossa vida não foi ruim, era muito divertida, éramos muitos irmãos que se somavam aos muitos filhos dos colonos da fazenda. A gente brincava muito. Nós não  trabalhávamos na lida rural, mas levávamos comida para o pessoal na lavoura. Papai era um homem muito sistemático e bravo, mas era muito bom. Era muito difícil, antigamente, mas não havia essa violência de hoje, não.

 

ET – Lembrando as peraltices, com tanta criança, algum fato marcou sua infância?

Adelina – Todo esse tempo bom me marcou muito, mas um acidente com mamãe nos deixou marcas inesquecíveis. Eu me lembro que era menina, uns sete anos, os meninos já estavam mocinhos... Estava dormindo e acordei com muitos gritos vindos do curral e uma grande confusão.  Eu me levantei rápido e cheguei até à porta para ver o que estava acontecendo, quando vi o pessoal carregando mamãe toda ensanguentada. Eu me lembro como se fosse hoje. Comecei a gritar e chorar. Tiveram que buscar um carro na cidade, porque na roça só havia carro de boi e cavalos. 

 

ET – O que aconteceu?

Adelina – Mamãe era muito trabalhadeira, mas um dos trabalhos que papai não gostava que ela fizesse, era tirar leite no curral. Mas ela insistia e estava lá ajudando, quando aconteceu o acidente.  Ela caiu e a vaca pisou. Antigamente, havia vacas muito bravas. Mamãe machucou demais, quebrou costela. São fatos que a gente nunca esquece. 

 

ET – Do que mais você não esquece?

Adelina – Ah, das festas religiosas. Herdamos uma religiosidade muito grande de papai e mamãe, que nasceu quando todos éramos ainda crianças. Começou ali minha religiosidade, na infância, com as rezas do terço em casa, e as grandes festas dos Santos Reis. Papai é do dia 6 de janeiro, por isso, todo ano havia Folia de Reis na fazenda. Não me esqueço também das festas na cidade, nossas  idas e vindas pra cidade de carro de boi, na semana santa, na festa de Na. Sra. d'Abadia, outras vezes para assistir às missas. Havia umas festas muito boas, no tempo do padre Alaor e também dos outros vigários.

 

ET – Aos 15 anos, então, vem prá cidade... Se era uma vida tão boa, por que se mudaram?

Adelinha – Prá estudar. Mas só viemos duas, a Isaura e eu, prá fazer o 4º ano primário com o Prof. Antenor Germano. A escola dele era ali onde é o depósito do Scala, na av. Benedito Valadares. Terminei o 4º ano, mas fiquei com vergonha de continuar a estudar. Achei que já estava velha e parei (risos). Só depois de algum tempo, vi o erro que cometi. Foi quando os meninos começaram a estudar. Eu dizia prá mim mesma: 'burra, boba, devia ter estudado!!'  Acho que com o passar do tempo, fiquei mais ativa. Quando parei de estudar, fui aprender a costurar, bordar e a plissar, aprender coisas de casa mesmo.


ET – Já moravam aqui na praça do Rosário?

Adelinha – Não. Papai nos deixou na casa da tia Bilica, do Miguel Alvim, pra cima do Correio Central. Papai pagava pensão lá. Mas a gente vivia pedindo pro papai comprar uma casa na cidade. Meus irmãos casaram todos, ficamos só a Isaura e eu. Tínhamos a minha avó e outras pessoas da família, mas não era a mesma coisa. Ele era boiadeiro, viajava muito e ia sempre enrolando. Até que um dia ele fez uma promessa. Como ele era muito político, daqueles PTB roxo, ele prometeu: Se ganhasse na política, ele compraria uma casa na cidade. Achamos muito bom e haja torcida pra ele ganhar. Só que naquele tempo eu não votava ainda. Depois que eu me casei, não podia falar pra ele que eu era de outro partido, não era do lado dele mais (risos). Mas até eu me casar, tinha que seguir o que ele mandava.  E ele cumpriu a promessa. Ele ganhou a política e mudamos pra cidade, morando de aluguel, mas mudamos, lá na av. Capitão Borges. Mais tarde, ele comprou a casa que era do Sr. Alaor Afonso, perto da casa da Cultura.  E nunca mais morei na roça. 

 

ET – E aqui na cidade conheceu o Zecão?

Adelinha – Não! Eu conheci o Zecão na roça, mesmo. Ele ia nas festas lá na fazenda. Como eu disse, todo começo de ano tinha festa dos Santos Reis. Era muita comida, doce, baile. O pessoal amanhecia. Eu, menina de 9 anos, ajudava a fazer doce de leite. E naquela época ele ia às festas lá, não perdia uma (risos).  Como eu disse, eu morava com a tia Bilica, ali perto dos correios, e o Zecão trabalhava de alfaiate com o Mário Bessa, um pouco prá cima, e todo dia passava ali na nossa porta. Ele passava e minha prima, Antônia, falava: 'Aí, ó! Isso que é moço pra você namorar. Esse é moço bom, de boa família' (risos). E realmente ele era muito bonito. Mas eu não estava nem aí. Zecão e eu  só começamos a namorar quando  eu  tinha 20 anos e  aí descobri que ele ia nas festas da fazenda por minha causa. Quando nos casamos, eu ia completar 24 anos e ele tinha 31.

 

ET – Foi quando saiu de casa prá morar com o Zecão. Quem casa quer casa. Foi assim?

Adelina – Foi, mas por muito pouco tempo. Logo que nos casamos fomos morar no bairro do Rosário, vizinhos de meus sogros, Luiz Zandonaide e Rosa. Mas como estavam muito idosos e davam muito trabalho, decidimos morar com eles, aqui mesmo nesta casa, na praça do Rosário. Quando eu já tinha a Elísia, nos mudamos para Patrocínio. O Zé abriu uma loja de confecções naquela cidade, como representante da marca I.G. Mas foram só oito meses, porque um dia a gente veio a Sacramento passear e sentimos que eles estavam precisando de nós. E voltamos prá esta casa, e nunca mais saímos daqui.

 

ET – E a vida de casada, Da. Adelina, foi difícil? Depois de tanto tempo, depois de tudo que construiu, começaria tudo de novo? Valeu a pena?

Adelina – Sim, com certeza. Foi uma vida de muito trabalho, mas muito feliz. Foi muito boa a minha vida. Aliás, continua sendo muito boa, não posso reclamar da minha vida, não. Então, eu dividia minha rotina de trabalho entre cuidar do meu sogro, dos meus filhos e a oração, pois eu moro quase dentro da Igreja.  Tinha dia que levava a meninada toda prá missa, outros dias, não. Alguns iam à missa das 10h00, na Matriz, e eu levava os outros comigo. Depois de algum tempo, meu cunhado, João, veio morar conosco. Foram 25 anos. Além de sua irmã, a Nenê, que também morou aqui nesta casa por 45 anos. Então, valeu, sim, muito a pena. A gente tem que fazer alguma coisa pelas pessoas, eu amava o Zecão e aceitei com amor todo esse trabalho. Nunca me arrependi.

 

ET – A Sra. acha que hoje algum casal teria essa solidariedade?

Adelina – Hoje, pode ser... Mas eu acho muito difícil. 

 

ET – Além desse trabalho com os filhos, com a casa, além das rezas, a gente sabe que a Sra. foi a melhor plissadeira da cidade. É verdade?

Adelina – Sim, é verdade, trabalhei muito para ajudar a criar os filhos. Trabalhei demais. O Zecão era alfaiate e eu plissava. Plissava os uniformes das alunas da Escola Normal, roupas de noivas. Faço plissê até hoje pras roupas de noivas. Hoje não usam muito plissê, só mesmo nas roupas de noivas. Mas já plissei demais. As meninas me ajudavam muito em casa. Zecão trabalhou com o Seu Ângelo e virou alfaiate famoso. Ele não gostava muito de alfaiataria, reclamava de Da. Rosa, sua mãe, por tê-lo obrigado a aprender costurar. Mas ele viveu disso, a vida dele inteira foi na alfaiataria. Uma vez ele até comprou um caminhão em sociedade, mas foi por pouco tempo. Trabalhou também uns tempos no Sacramento Clube, mas ele era o Zecão Alfaiate e eu a Adelina plissadeira. 

 

ET – E nessa luta, os filhos vieram chegando e aumentando o lar?

Adelina – Sim, foram seis. A primeira foi Elísia Rosa, professora, casada com Hugo, mora em Belo Horizonte. Depois vieram o Miguel Luiz, que mora em Cuiabá; a Silvana, professora casada com Antonio Galvão, mora em Belo Horizonte; a Eliana, que também é professora, casada com Luizinho; o Ângelo, casado com a Gleibe, moram em Cuiabá e Moisés, falecido. E dos filhos vieram os descendentes. Tenho 16 netos e dois bisnetos. 

 

ET – Nasceram todos aqui na esquina da praça do Rosário, já abençoados pela padroeira do bairro...

Adelina – Isso mesmo. Debaixo dos pés de Nossa Senhora do Rosário. Minha vida nesses últimos 58 anos foi aqui nesta casa. Aqui nasceram todos os meus filhos. Tive todos assistidos por uma parteira.  Quando tinha os quatro meninos mais velhos, sofri um tétano e quase morri. 

 

ET – Por conta do parto?

Adelina – Não, porque estrepei o pé com espinho de limeira e não cuidei. Meus partos foram todos normais e sem problemas. Mas tinha quatro filhos pequenos, trabalhava demais e não tinha tempo de me cuidar. Fiquei quatro meses doente. Teve até junta médica aqui em casa e queriam me mandar prá Uberaba de todo jeito, o Dr. Clemente que não deixou. 'Se levarem a Adelina prá Uberaba, ela vai ficar jogada lá, e ninguém vai cuidar desse pé dela, ela vai morrer lá', ele dizia. E não deixou. Ele e o Dr. José Zago me curaram.

 

ET – Vê-se que a Sra. recebeu muitas bênçãos na vida. Hoje, completando 80 anos, com a serenidade dos justos e solidários, alguns filhos morando  longe, o Zecão também se foi... que prazer a vida ainda lhe oferece?

Adelina – Muitos prazeres! É verdade que vivo também de muitas saudades, de meus filhos e netos que moram longe, e de meu Zecão, mas tenho duas das maiores riquezas do mundo. Meus netos, Júlio e Vinícius, que vieram morar comigo há alguns anos. O Vinícius tinha sete anos e o Júlio apenas quatro. Quando os recebi com essa tenra idade, eu chorei muito, porque o normal é que os filhos permaneçam com os pais. Pais separados dos filhos, deve ser muito triste, mas hoje vejo que são a grande bênção de minha vida. São meus companheiros no dia a dia. Como agradeço a Deus pela minha vida, pelo meu esposo, pelas pessoas queridas que cuidei, pelos meus filhos todos e agora, por esses dois tesouros que moram comigo, esses dois netos, que são como filhos. Agradeço por tudo o que recebi na vida. Foi uma vida simples, mas muito feliz. Sinto-me muito feliz e agradecida por tudo o que vivi até hoje. 


ET - Parabéns!!