Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Por onde passa o futuro do Cristianismo?

Edição nº 1546 - 25 Novembro de 2016

O Papa Francisco tem um mérito inegável: tirou a Igreja Católica de uma profunda desmoralização por causa dos crimes de pedofilia que afetaram centenas de eclesiásticos. Em seguida, desmascarou os crimes financeiros do Banco do Vaticano, que envolveram monsenhores e gente das finanças italianas.
Mas mais que tudo, deu outro sentido à Igreja, não como uma fortaleza cerrada contra os “perigos” da modernidade, mas como um hospital de campanha que atende a todos os  necessitados ou em busca de um sentido de vida. Este Papa cunhou a expressão “uma Igreja em saída” na direção dos outros e não de si mesma, se autofinalizando.
Os dados revelam que o cristianismo é  hoje uma religião do Terceiro e do Quarto Mundo. 25% dos católicos vivem na Europa, 52% nas Américas e os demais no restante do mundo. Isso significa que, encerrado o ciclo ocidental, o cristianismo viverá sua fase planetária  uma presença mais densa nas partes do planeta, hoje consideradas periféricas.
 Ele só terá um significado universal sob duas condições:
Na primeira, se todas as igrejas se entenderem como o movimento de Jesus, se reconhecerem reciprocamente como portadoras de sua mensagem, sem nenhuma delas levantar a pretensão de exclusividade mas juntas dialogarem com as religiões do mundo, valorizando-as como caminhos espirituais habitados e animados pelo Espírito. Só assim haverá paz religiosa, um dos pressupostos importantes para a paz política. Todas as Igrejas e religiões devem se colocar a serviço da vida e da justiça dos pobres e do Grande Pobre que é o planeta Terra, contra o qual  o processo industrialista move uma verdadeira guerra total.
A segunda condição é de o cristianismo relativizar suas instituições de caráter ocidental e ousar se reinventar a partir da vida e da prática do Jesus histórico com sua mensagem de um Reino de justiça e de amor universal, numa total abertura ao Transcendente. Manter  o canon atual, poderá condenar o cristianismo a se transformar numa seita religiosa.
 Segundo a melhor exegese contemporânea, o projeto original de Jesus se resume no Pai-Nosso. Aí se afirmam as duas fomes do ser humano: a fome de Deus e a fome de pão. O Pai Nosso enfatiza impulso para o Alto. E o Pão Nosso, seu enraizamento no mundo. Somente unindo Pai-Nosso com Pão-Nosso se pode dizer Amém e sentir-se na Tradição do Jesus histórico.  Ele pôs em marcha um sonho, o do Reino de Deus, cuja essência se encontra nos dois pólos no Pai-Nosso e no Pão Nosso vividos dentro do  espírito das bem aventuranças.
 Isto implica para o cristianismo corajosamente se desocidentalizar, se desmachicizar, se despatriarcalizar e se organizar em redes de comunidades que se acolhem reciprocamente e se encarnam nas culturas locais e formam juntas o grande caminho espiritual cristão que se soma aos demais caminhos espirituais e religiosos da humanidade.
Realizados esses pressupostos, apresentam-se atualmente às Igrejas ou ao cristianismo quatro desafios fundamentais.
      O primeiro é a salvaguarda da Casa Comum e do sistema-vida ameaçados pela crise ecológica generalizada e pelo aquecimento global. Não é impossível uma catástrofe ecológico-social que dizimará a vida de grande parte da humanidade. A questão não é mais que futuro terá o Cristianismo, mas como ele ajudará a garantir o futuro da vida e a biocapaciade da Mãe Terra. Ela não precisa de nós. Nós sim precisamos dela.
O segundo desafio é como manter  a humanidade unida.  Os níveis de acumulação de bens materiais em pouquíssimas mãos (1% controla a maioria da riqueza mundial) poderá cindir a humanidade em duas porções: os que gozam de todos os benefícios da tecnociência e os condenados à exclusão, sem expectativas de vida,  ou até de serem considerados sub-humanos. Importa afirmar que temos uma única Casa comum e que somos todos irmãos e irmãs, filhos e filhas de Deus.
O terceiro desafio é a promoção da cultura da paz. Os conflitos bélicos, os fundamentalismos políticos e a intolerância  face às diferenças culturais e religiosas podem levar a níveis de violência altamente destrutiva. Eventualmente, pode  degenerar em guerras letais com armas químicas, biológicas e nucleares.
O quarto desafio concerne à América Latina: a encarnação nas culturas indígenas e afroamericanas. Depois de haver quase exterminado as grandes culturas originárias e escravizado milhões de africanos, impõe-se a tarefa de ajudá-los a se refazerem biologicamente e a resgatarem sua sabedoria ancestral e de verem reconhecidas suas religiões como formas de comunicação com  Deus. Para a fé cristã, o desafio consiste em animá-los a fazerem a sua síntese de forma a dar origem a um cristianismo original,  sincrético, afro-indígena-latino-brasileiro.
A missão das Igrejas, das religiões e dos caminhos espirituais consiste em alimentar a chama interior da presença do Sagrado e do Divino (expressos sob miríades de nomes) no coração de cada pessoa.
O Cristianismo, na fase planetária e unificada da Terra, possivelmente, se constituirá numa  imensa rede de comunidades, encarnadas nas diferentes culturas, testemunhando a alegria do evangelho que promove  já nesse mundo uma vida justa e solidária, especialmente, para os mais marginalizados e que se completará na culminância da história.
No presente, cabe-nos viver  a comensalidade entre todos, símbolo antecipador da humanidade reconciliada, celebrando os bons frutos da Mãe Terra. Não era esta a metáfora  de Jesus, quando falava do Reino de vida, de justiça e de amor?
 
Leonardo Boff esceveu Eclesiogênese:a reinvenção da Igreja, Record 2008.