Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

A terceira margem do rio

Edição nº 1376 - 23 Agosto 2013

Conheci Chiquinho na 5ª série do então Ginásio da Escola Normal de Sacramento, hoje a Escola Coronel. Estudávamos na sala 13, a primeira subindo as escadas do antigo Galpão. Éramos 42 adolescentes, vivendo os idílios de pisar pela primeira vez os pátios da principal escola da cidade, depois de enfrentar aquele 'cursinho de férias', o Admissão ao Ginásio. Já entrando nos anos 60, contrariando a pedagogia de Eurípedes, que em 1918 ensinava no Colégio Allan Kardec com salas mistas, não havia meninas na sala.

Chiquinho era um menino tímido, recém chegado da roça, muito pobre e órfão de pais. Magrelo e lépido nas aulas de Educação Física, bom de bola e, ao contrário da dificuldade que alunos oriundos de escolas rurais carregam, sobressaía-se com sua inteligência e aproveitamento exemplar nas demais matérias. 

Como a personagem Sérgio, de O Ateneu, primeira obra lida na frente da sala, sob os doces cuidados da inesquecível Corina Novelino, deleitávamos os romances. (Vai se ler um livro hoje, assim, na frente da sala!) Cada aluno lia uma página do belo romance de Raul Pompéia, deliciando-se com o diário narrado pelo protagonista sobre o internato de Dr. Aristarco. O cotidiano, os lazeres, as aulas, os encontros com Da. Emma, mexendo até em temas proibidos como o homossexualismo... A palavra 'gay' inexistia em nosso vocabulário. Ouvíamos atentos e ávidos a história alternada em boas, ótimas e fracas leituras, sempre corrigidos pela atenta mestra. Um mundo novo se nos descortinava. Mal sabíamos que seria exigente e esmagador. 

Da escola para casa e dali para o primeiro emprego. Morava com os tios em uma pequena casa tipo duas águas, na 'rua de Baixo da Caixa d'Água'. “Como eram bonitos os nomes das ruas de minha infância” – diz com razão, Manuel Bandeira, em um de seus poemas. Como Sérgio no Ateneu, Chiquinho permaneceu apenas dois anos entre nós, tempo suficiente, para fincar no fundo de nossa alma recordações tão plenas do fim da meninice, a ponto de selar também uma amizade imorredoura. Depois de uma temporada na casa de parentes em Araxá retorna ao povoado onde nasceu, para mais tarde, assentar morada definitiva na cidade onde construiria o seu mundo. 

Pouco tempo depois, já nos nossos belos 15 anos, ele um pouquinho mais velho, nos encontrávamos nos rachões da praça da Cadeia, nos finais das tardes. E dali para o campo do Atlético, no time dos cascudos, enfrentando feras da bola, Cavalo, Robim, Quinzim, Sô Zé, Som... Embora franzino, mas de boa estatura, herdando a valentia e a dureza das lides rurais, Chiquinho tinha um fôlego invejável. Corredor, marcador, do meio campo para trás era um esteio na defesa. 

Dali, nos finais de semana nos aventurávamos até os poços da Voltinha, no Benjamim... E, à noite, na praça da Matriz, ambos de ternos e gravatas, desses bem simples, nos aventurávamos nas voltas do jardim, a trocar olhares com as garotas que giravam ao contrário. Cabelo com topete, bem ao estilo James Dean, belíssimos olhos azuis, Chiquinho encantava as meninas... Me perdoe dizer, mas donzelas da casa grande e mundo requintado o desejavam, em vão, quando descobriam o menino da casa de terra batida. Ah, se soubessem...

Das voltas que o mundo dá tiram-se também lições de amor. E foi numa dessas voltas que Chiquinho balança o coração por uma linda morena das terras da Santa Maria. Aliando beleza a uma doçura incomum, sempre afável e cheia de carinho, ainda, a uma tenacidade própria daquelas mulheres acostumadas ao trabalho rural, Arlete foi a pretendida de meu amigo. Enamorou-se de tal forma que a morena foi sua companheira mais amorosa e fiel pelo resto da vida. Vida curta, marcada pela deficiência cardíaca que um dia o tombou, sem antes deixar à esposa amada uma herança tão sublime, Chiquinho filho e Maísa.

Sua transvivenciação aconteceu de um modo tão cálido. Assentado ao sofá, assistindo a uma de suas paixões, o futebol, adormeceu para acordar nos braços do Pai. Tomou Chiquinho o último barco do Araguaia, dessa vez, sozinho, sem os amigos de pescaria, e aportou morada na terceira margem do rio, no dizer de Guimarães Rosa. 

Saudades, companheiro! 

                                                 (WJS)