Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

O Túmulo de Cônego Hermógenes

Edição n° 1332 - 19 Outubro 2012

Cumprindo uma tradição da época, o filho mais velho do Capitão Manoel Ferreira de Araújo, Hermógenes, foi mandado para o seminário, talvez sem mesmo a vocação religiosa. Era o costume. Tornou-se padre, foi laureado com o título de “Cônego” e nomeado vigário de Desemboque, nos idos de 1810. Tornou-se também um homem do sertão, ávido em adquirir terras e próspero na cultura e na bondade, como consta de sua biografia.

No seu testamento, externando sua altíssima cultura teológica e, sobretudo, seu espírito religioso, que infelizmente tenho encontrado pessoas negando isso, ele coloca todas as disposições testamentárias sob a luz da “Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo”, a quem diz adorar e amar. Ali reconhece a paternidade de nove filhos, tidos com D. Ludovina, uma matriarca de Desemboque.

Aqui se mostram três facetas de um mesmo homem: religioso, pai extremado (pois criou todos os filhos junto de si) e homem viril, venerável chefe de família. Penso que, se alguém se atrever a negar uma dessas facetas, seria, no mínimo, imprudente. O fato de um padre ter filhos (mormente naquele sertão inóspito do século XIX) em nada deprecia sua figura de sacerdote e sua piedade. Agora a figura de um bígamo e de um devasso sexual sim, seria afronta à moral, aos bons costumes e à fé e isso ele não o foi. O padre com sua família era coisa comum no sertão. E isso, no caso de Cônego Hermógenes, em nada implicou na sua formação moral e social, tanto que foi considerado o “homem mais ilustre do antigo sertão”. E se hoje o considero um sacerdote exemplar, é porque não vejo impedimento para a santidade no fato de um padre ter família. Dias desses fui chamado piego por ver no Cônego um homem religioso. A santidade consiste em ser amigo de Deus e não a pieguice. E amigo de Deus, Conego Hermógenes o foi, portanto um santo, ainda que homem ávido de terras, gados, escravos e filhos.

No quinto dia, após sua morte dada em 26 de setembro de 1861, esse grande homem foi dado à sepultura, na porta da igreja matriz de Desemboque, conforme pedira aos familiares e tinha disponibilizado no seu testamento. Ali permaneceu por 96 anos até 1957 quando um descendente seu, Dr. Clemente Vieira de Araújo, prefeito de Sacramento na época, acompanhado de Dom Alexandre Gonçalves do Amaral, bispo da época, dali retirou seus restos mortais e os transportou para Sacramento. O fato de o bispo autorizar o traslado de seus restos mortais não fere, de forma alguma, a sacralidade que a Igreja dá às sepulturas cristãs. Não se profanou sepultura, não se vilipendiou sua memória, apenas quebrou-se uma vontade testamentária que, talvez o bispo e o próprio prefeito, desconheciam. Não se pode dizer a Igreja “profanou ou desrespeitou” um túmulo porque dali retirou restos mortais. A Igreja considera santo o lugar da sepultura e jamais permitiria a profanação de um deles, mormente o túmulo de um sacerdote.

Na abertura daquele venerável túmulo um fato interessante se deu e eu, nesse tempo presente, como pessoa que luta para preservar a história de Sacramento e a memória de Cônego Hermógenes, vejo-me na obrigação de externar para repassar os fatos como se deram. São lembranças do ex-prefeito Dr. Clemente, de saudosa memória, contadas aos seus amigos mais pessoais, dentre eles, nosso amigo Dr. José Alberto Bernardes Borges. Dentro do túmulo havia duas repartições, ou gavetas como se é comum chamar e também duas ossadas humanas, lógico. Uma delas ainda coberta com vestes sacerdotais e alfaias, era o Cônego Hermógenes, a outra uma ossada comum sem algo especial que a identificasse. Quem era? Não se soube na época. Poderia ser um irmão do Cônego, uma irmã, uma filha, um filho, alguém próximo dele. O prefeito que era médico entendeu “pela dilatação dos ossos da bacia” que muito bem poderia ser a ossada de uma mulher, que lá ficou naquele local, enquanto que a ossada do Cônego veio para Sacramento, cidade fundada por ele.

Essas foram as lembranças de Dr. Clemente. Pode-se pensar e mesmo acreditar que tal ossada poderia ser de sua esposa, Dona Ludovina, mas isso sem comprovação científica. Esse fato, a meu ver, em nada pode tornar o túmulo ou a figura do Cônego Hermógenes objetos de depreciação moral. Essa são as lembranças de quem lá esteve e de quem abriu a sepultura, qualquer outra versão além dessa exige sustentação documental ou oral fidedigna antes de ser aventada.

Em 31 de maio de 1982 o ex-prefeito Dr. José Alberto trasladou do cemitério municipal para a praça da Igreja Matriz aqueles restos mortais do venerável Cônego Hermógenes, colocando-o no lugar onde em 1812 ele plantou uma cruz. Quanto a necessidade ou não desses atos de traslados, falaremos em outras oportunidades, nessa agora, nesse momento, surgiu apenas a necessidade de sustentar os fatos que se deram na abertura do túmulo em Desemboque, no ano de 1857. Que se guardem essas memórias sem alterações outras que não se sustentam em documentos ou tradição oral fidedigna.