Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

A alma abandonada

Edição n° 1313 - 08 Junho 2012

Duas crônicas publicadas pela Folha de S. Paulo, no início desta semana (quatro e cinco de junho), chamaram minha atenção para a quase coincidência dos temas abordados: “Meu Inferno Mais Intimo” – Luiz Felipe Pondé e “Este é o meu corpo” – João Pereira Coutinho. Os articulistas, cada um a seu modo, acenaram para a questão do descaso, ou do “esquecimento” de que, além do corpo, temos uma alma a cuidar. Coutinho, comenta a exagerada preocupação que devotamos hoje ao corpo – quase uma idolatria, sendo que, há algum tempo atrás, a preocupação que norteava a conduta humana se voltava para o cultivo da alma. Diz ele: “o corpo tinha a sua importância como guardião da alma divina. Mas só a alma era eterna; o que concedia ao corpo um estatuto perecível e secundário”. Assim, conforme tal conceituação, abria-se “um horizonte de eternidade” e isso desviava o olhar humano do lugar histérico que ocupa hoje, ou seja, o culto ao corpo. Mais adiante, nessa mesma direção, completa o raciocínio dizendo “tratar-se de uma conduta que condena o homem a adorar um deus falível, sujeito às inclemências da velhice, da doença e da morte. Se existem causas perdidas, o corpo é a primeira delas e, alimentar causas perdidas é um sintoma de demência”.

Por sua vez, Pondé relata duas histórias: a primeira mostra um jovem angustiado que consulta um rabino sobre o medo que sentiria quando, diante de Deus, tivesse que admitir não ter conseguido viver segundo os exemplos de vida de Moisés e Elias.  A resposta do rabino, segundo Pondé, “muda o eixo da questão", mostrando que Deus não está preocupado se a pessoa não consegue seguir parâmetros morais exteriores. A preocupação de Deus é saber até que ponto a pessoa consegue ser ela mesma.Com isso fica enfatizado que o nosso “EU” é o nosso maior desafio. Diz ele: “Enfrentar-se a si mesmo, reconhecer nossas mazelas, nossas inseguranças e ainda assumir-se é atravessar um inferno de silêncio e solidão”. Na segunda história, um justo, ao chegar ao céu, ouve ruídos ensurdecedores vindos de uma sala fechada e pergunta a Deus que lugar era aquele, ao que Deus responde, é o inferno e lhe recomenda que abra aquela porta e, ao fazê-lo, escuta o que os infelizes ali presentes estão a gritar: Eu, Eu, Eu. Então, o cronista comenta: “numa época como a nossa, obcecada por essa bobagem de autoestima, a tendência do inferno é ficar mesmo superlotado, cheio de mentirosos praticantes do “marketing do eu”.

E, João P. Coutinho,como se complementasse tal pensamento, diz: “É por isso que a nossa obsessão com a carcaça não se corrige com aulas de imagem e expressão corporal. Não se corrige com mais autoestima. Ironicamente se corrige com menos autoestima. Somos pó e ao pó retornaremos.”

Sem reduzir uma questão tão complexa a simples apelos religiosos ou regras de condutas morais, a verdade é que o culto ao corpo tornou-se uma obsessão e, em contrapartida, a alma, para alguns, ficou de fato relegada ao esquecimento. Mas, o que ninguém ignora, no entanto, é que chegará o dia em que o envelhecimento vem bater às nossas portas. Então os recursos das academias, das plásticas corretivas, dos milagrosos cosméticos e quais, passam para um segundo plano e, no seu lugar, na maioria das vezes, surge o andar trôpego, o uso das bengalas, das cadeiras de rodas, dos ajudadores- até para o nosso  banho. Então, se do nosso corpo não restar mais nada e se a nossa alma caiu no esquecimento, onde encontrar pontos de referências para o confronto final?

 

Mariú Cerchi Borges