Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Os 200 anos de Sacramento

Edição nº 1741 - 24 de agosto de 2020

Água Emendada

Carlos Alberto Cerchi

 

A presença de grupos humanos na Mesopotâmia é muito antiga e data do período paleolítico. Por volta de 7000 a.c. já existiam populações humanas. Posteriormente, inúmeras sociedades como a dos assírios, caldeus, sumérios e babilônicos se fixaram na região que ficou conhecida como Crescente Fértil, área que se estende do Mar Mediterrâneo até o Golfo Pérsico, de grande potencial agrícola, da qual faz parte a mesopotâmia de onde vieram religiões: mitos e farta literatura histórica. Esta parte do globo, no Oriente Médio, era o lugar culturalmente mais rico da antiguidade. Ponto de cruzamento da influência dos primeiros impérios, de civilizações letradas e complexas (egípcios, mesopotâmios, hititas, fenícios, lídios) passagem obrigatória de mercadorias entre a Ásia e o mundo mediterrâneo, a chamada Ásia Menor, formados atualmente pela Turquia, Síria, Líbano, Israel, Países árabes foi a pátria de algumas das maiores conquistas da humanidade e que promoveram a sua evolução ao longo do tempo. A começar pelo alfabeto, invenção dos mercadores fenícios, a partir dos hieróglifos egípcios. A moeda nasceu aí, na Lídia, hoje parte da Turquia, por volta do século VII a. C., já aparece ligado à escravidão: Escravidão, dinheiro, alfabeto – a trindade que define as sociedades da bacia do Mediterrâneo, em seu “boom” comercial que vai culminar nesse imenso mercado comum que foi o Império Romano de longa duração. Nessa região, porém, não nasceram só inovações materiais. Nela surgiram os mitos mais fundamentais que formam o imaginário dos ocidentais até hoje. Conhecimentos e tradições herdadas da grande diversidade cultural que ali floresceu e se tornou patrimônio comum da humanidade. Na gênese da história do Ocidente encontra-se o relato do dilúvio, um dos mais tradicionais mitos conhecidos. Semelhantes histórias são contadas por diferentes civilizações. O relato bíblico revela que Noé enfrentou o dilúvio numa grande barca, salvando as espécies vivas conduzindo casais de animais que povoariam a terra após a inundação das chuvas. Esta narração seria inspirada na história de Gilgamesh um herói lendário de origem suméria que viveu na mesopotâmia como governante e rei por volta de 2.700 a.C. considerada a mais antiga obra literária, a epopeia de Gilgamesh foi encontrada em Nínive na biblioteca de Assurbanipal. Esse poema épico narra as aventuras de um herói em busca da eternidade, enfrentando, dentre outros obstáculos, um dilúvio. Criado há milhares de anos remete-nos para tempos remotos e estabelece uma ponte que liga aos povos de antigamente aos temores cotidianos de hoje. A eterna dependência da humanidade com a água é vislumbrada no enredo do dilúvio, incorporado por outros povos às suas práticas religiosas. Acredita-se, por exemplo, fato confirmado por estudiosos, que nesta região viveu Abraão, patriarca fundador das crenças que deram origem ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo – três das principais religiões do mundo atual, transmitidas por Moisés, Jesus e Maomé. Da mesma forma foram os mitos, as aventuras épicas e as manifestações literárias que continuam sendo motivo de inspiração e de recriação de poemas e textos marcados por emotividade e originalidade. O poema “Água Emendada” seria o microcosmo dessa visão comparativa e interativa entre as duas mesopotâmias: a do Oriente Médio, na Ásia, pela confluência dos rios Tigre e Eufrates, e a de Sacramento também pela confluência dos ribeirões Borá e Rifaina na região do Triângulo Mineiro – Brasil, na América do Sul. Água Emendada “Onde está a emenda da Água Emendada? Certamente, na imaginação de alguém que deu o nó na goteira.” Este poema é o grito de guerra inexistente Decorado nos lares humildes... De mamando a caducando a emoção deve tomar conta da legião de almas agradecidas pela predestinação De nascer em Sacramento. Convoco anjos e espíritos mancos... Despertem todos que nasceram no vale. Sejam acordados sem o estrugir dos fogos. E sem o alarido das trombetas! Antepassados, o descanso acabou! Zumbis distraídos... Legiões de proletários celestiais. Empenhados na canção para água emendada. Origem da mesopotâmia Entre os rios Borá e Rifania. Vertentes da Jerusalém cabocla, do Índio Caiapó errante Oprimido pelo famigerado trabuco Nas escaramuças desiguais E a favor do opressor incluso Silenciados na sua heroica história Restaram apenas pedra polida E igaçabas destroçadas Porém, as feições permanecem A força da genética e a tez morena Inconfundível fisionomia Que resiste à miscigenação Dos ancestrais de Antenor Germano e Carolina Maria de jesus Gerados no coração da África Filhos da diáspora negra permanente Faz do mundo uma aldeia dividida Europeus de todas as terras oriundos dos montes frios. Rebentos de pouca melanina nos olhos e na pele E muita adrenalina no sangue. Fizeram do trabalho a ideologia de vida E a panaceia de todos os males Na Ásia distante, de delicada aparência, olhos rasgados, desterrados do arquipélago do sol poente, tenacidade simbolizada nos habitantes da centenária Chácara da Japonesa, de verduras e hortaliças tenras. Imigrantes desterrados que vieram Sob a expectativa da rubiácea chegaram lançando fagulhas no ar... Sacolejados nos vagões de segunda classe. Da extinta Cia Mogiana de Estradas de Ferro. Transpuseram o Atlântico e a metálica ponte do Jaguara, no vale do Rio Grande de vulcânicas rochas pré-cambrianas Decompostas no basalto fertilíssimo que faz a opulência de prole e vida. Gênese da comuna original e única. Águas Emendadas... Nascidas na turfeira milenar de precoce vazamento, Brotadas no pântano dos covoás. Milagre das águas perenes do brejo tremedor “ Louvado seja o Senhor... - Para sempre seja louvado”, Por onde o universo se estende Ao minar das entranhas tornaram irrelevantes as teses Geológicas Vasos rompidos sob frágil cobertura orgânica Drenados em superfície plana Águas de indeciso destino! Nasce Borá, escorre Rifaina Nasce Rifaina, escorre Borá Despedem-se momentaneamente Onde está a emenda da água emendada? Asfixiada no aterro do negro asfalto de Araxá-Franca Ignoro esse sacrilégio no primitivismo que a poesia permite Os mananciais escorrem diametralmente Afastam-se da comunheira Do divisor das águas Tímidos fios de água cristalina Protegidos por exuberante mata-ciliar Rompendo com a monotonia do cerrado Cenário de árvores despidas das folhas que o vento de agosto joga na terra, fertilidade incorporada, latente força vital à ribanceira. Que permite a explosão do verde Na antevéspera da primavera sutil do hemisfério Sul longamente anunciada pelo estridente canto das cigarras, pré-históricos insetos que revelam o renascimento após o estalar do exoesqueleto de quitina. Borá O Borá significa na língua indígena o âmago, a essência, o conteúdo, referindo-se ao favo de mel das colmeias, das abelhas silvestres. Das abelhas indianas que passam por um canudo de cor escura para adentrarem na colmeia, surgiu a expressão Borá. Nome de abelha miúda, moradora de pedra fissurada, ou de pau ocado pela broca silvestre. Meliponídeo que produz pegajosa cola de própolis colocada ao redor do alvado, em proteção a pilhagem do ácido mel de medicinal propriedade, produzido no interior dos favos de cera em formas de glóbulos estufados, tuia para os filhotes ameaçados pelo desmatamento inclemente e devastador. Abelha borá... ribeirão Borá. Na seleção natural as abelhinhas borá perderam espaço para as europeias – Apis melífera – africanizadas, madrugadeiras e agressivas. Seus enxames ocuparam o vale e as quebradas de exuberante flora do cerrado e da mata tropical ciliar. O ribeirão Borá sobreviveu apesar do impacto provocado pela expansão urbana, e resiste com as graças do “Santíssimo Sacramento”, e com o milagre do ciclo das águas, dos bolsões do Osni Zago e dos olhos d´água da fazenda homônima. No barranco alto, a goiabeira longa, rente a corredeira, onde o fruto borbulhava ao cair de maduro, vinga dos micos e tucanos multicores. O Borá da sangra d'água de seiva vermelha Hemoliente e cicatrizante das chagas Do perfume exalado do veludo agreste E do barro sedimentado às margens O bambuzal dos entrantes sobrevive Na contenção que impede o assoreamento A sua sombra o rebojo emerge das locas E revela que a água é viva. Da figueira exuberante de frutos forrageiros. Repasto da taguara herbívora do Rio Grande. Borá, trilha e referência do padre Hermógenes Bruonswik. Na contenção da barranca- o São Jose-. De verdes folhagens e delicada flor azul, Semelhante a orquídea Walquiriana. Musgos avencas e samambaias... Desconhecidas coníferas em consórcio com o napiê de africana origem, tão antigas quanto as turfeiras de oleosa argila nos pântanos milenares, berçários de alevinos da piracema anterior. Peixe cascudo pré-históricos Bagres marrons e amarelos. De gosmenta secreção epitelial. Eventuais gambevas, lambaris de rabo vermelho. Cágados e lontras carnívoras. Intrincada cadeia alimentar. Onde a sucuri convive com o Martin pescador. O musgo forra o chão do portentoso óleo de copaíba Ao lado do jatobá de escoreada baga E o ninho do 'caga sebo', inacessível da enchente. Na margem do antigo curtume. Morada dos urubus a espreita das vísceras, descartadas do matadouro. Ivomir, Archimedes, Zé Cirilo e Windsor, Filhinho, Ataliba e Salmeron. Usina Cajuru percussora da eletricidade germânica Epopéia preconizada pelo barão de Mauá triangulino Cachoeira do inferno, garimpo e globo da morte. Nomes e histórias, tragédias e infância. O Borá é mais que um ribeirão. Porém, nem só de Borá viverá o homem. O Rifaina. O nome é de origem lusitana, originário de “arrifana” região de Portugal. Em demanda ao Araxá a rodovia passa pelo divisor de águas, comunheira de relevo onde o aterramento desemendou as águas primitivas, a origem do nome, e segregou nascentes irmãs. O Rifaina, escorre dentro da mata densa de centenárias árvores, amarradas ao cipoal, bromélias e epífitas em profusão de suave perfume nas orquídeas dos trópicos. O Rifaina verte para o sudoeste, fazenda samambaia da Maria Curandeira onde o voo rasante da perdiz fez o Quinto e o Tofe caminharem na macega, nas pegadas dos cães perdigueiros. Em baixo, na ribanceira, outras águas do Chapadão do Bugre e da Lagoa dos Esteios, caminho dos entrantes e trapeiros “indo e vindo” do Desemboque. O Rifaina de cachoeiras abruptas,. De sulcos cavados no quartzito hostil Trajeto acidentado da Serra da Canastra Onde os labirintos subterrâneos existem E se abrem na cratera de arenito do botucatu. Gruta dos Palhares ou Caverna da Rifaina? Vale profundo aberto em Itambé, antes do pouso do Mutum. Cenário da epopeia dos bondes elétricos Na exuberante Serra do Cipó. Época do pioneirismo da Mogiana. Nas pegadas do café Adentrando o vale do Rio Grande, Ás sombras da mata tropical, Entre bromélia e cipoal amarrados Aos angicos, aroeiras e umbaúbas

A montante o Córrego dos Patos Na outra vertente o Capão do Mel e o Cana Brava Pontes metálicas de arrebites e parafusos na linha do trem. Aço de lenta corrosão, importado da Inglaterra, Testemunho secular da revolução industrial. Com reflexo nos trópicos. O ostracismo da rodovia, provocado pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) Fez calar máquinas e estações Loucos motivos do capital financeiro. Enfim um abraço fraterno do Rifaina e do Borá. Na solidão do cafundó. Fronteira da cana de açúcar da Mendonça. No município de Conquista. A Foz Desemboque na estrada azul do grande rio. Em frente a ilha do Belém. Pai do Arthur e do Nenzo. Porta Aberta da piracema. Sob o rugido do mata-doutor Entre o lar de alimentação e reprodução. Sufocados pelo lago da Usina de Igarapava. Que fez inundar várzeas e medrar o aguapé. Dos longínquos mananciais. Existentes nos contrafortes da Mantiqueira e da Canastra Na cachoeira das Emas, na terra do Godoy Do extinto poço do chorão no córrego Jacá Do Tapera dos Manzans. Do córrego dos Pintos e Lajeado dos Araújo. Jeticai, topônimo das nações indígenas do Triângulo Mineiro. O Rio Grande a caminho do macrocosmo, das águas emendadas. Sapucaí, Mogí-guaçu, Paranapanema, Tietê, Paraguai- Paraná. Atlântico Sul, Enfim o panteísmo sonhado. Das águas e almas emendadas.
Carlos Alberto Cerchi é professor aposentado, escritor e atual secretário de Cultura do município.