O tunisiano Mohamed Sellami, engenheiro civil, que chegou a trabalhar alguns anos na profissão, na Alemanha, hoje é um grande estudioso de botânica, dedicando-se a plantas de diferentes biomas pelo mundo a fora. Recém chegado ao Brasil, a convite do também amante das plantas, o técnico em Áudio, Diego Imacedo Techera, esteve em Sacramento para conhecer a biodiversidade do antigo Sertão da Farinha Podre, o vasto cerrado que há 200 anos ocupava toda a área que denominavam de mesopotâmia mineira, compreendida entre os rios Grande e Paranaíba.
Acompanhados do amigo e também apaixonado pelas plantas do cerrado, o quase sacramentano, Álvaro Juarez, Sellami e Techecha estiveram na redação do ET, em dezembro último, para contar um pouco de sua história de vida e do projeto que o trio vem desenvolvendo cada um no seu pedaço de chão, da Tunísia, norte da África, passando por São Paulo e chegando aos últimos rincões da Canastra, bem perto da Gruta dos Palhares, onde Álvaro tem uma pequena propriedade.
Veja a entrevista.
ET - Por que um tunisiano, morador do deserto, veio pesquisar plantas no cerrado do chapadão sacramentano, hoje quase desaparecido?
Sellami - Gosto muito de plantas e chegando ao Brasil, fiquei muito impressionado de ver a diversidade existente em seu país, especialmente do cerrado, que tem muitos biomas diferentes. O objetivo de nossa visita a Sacramento foi justamente para conhecer mais in loco o bioma do cerrado, provar as frutas e conseguir sementes para propagar essas espécies e, também, adaptá-las ao meu clima.
ET – Quais as espécies que vocês estão selecionando para levar?
Sellami - Pretendemos levar algumas espécies como a que podem suportar o frio, popularmente conhecidas como Mama Cadela, Marolinho do Cerrado, Marmelada de Cachorro. E, talvez, alguma Gabiroba, Articum Cagão, Mangaba, que são as melhores. Mas ainda estou estudando essas espécies para ver quais serão as melhores para se adaptarem em outros lugares. O mesmo em relação aos frutos que estamos encontrando e que lá não são comercializados. Nós só os encontramos em livros de literatura botânica e com amigos colecionadores como Álvaro Juarez e Diego Techera, além de outros colecionadores no Brasil. Pude selecionar algumas plantas, sei que possuem frutos gostosos, como uma espécie de Anonaceae. Não provei a fruta, porque não é época. Mas sei que os frutos são muito gostosos. Todas elas são nativas do cerrado, mas também encontradas próximas ao cerrado e podem ser cultivadas em outros lugares.
ET – Mesmo na Tunísia com um clima tão adverso?
Sellalmi – Sim, mesmo lá. O clima da Tunísia encontra-se sujeito a influências mediterrânicas (ou mediterrâneas, como se diz?) e saarianas. O clima mediterrâneo predomina no Norte do país e caracteriza-se por invernos amenos e verões quentes e secos. As temperaturas variam em função da latitude, altitude ou proximidade em relação ao mar Mediterrâneo, vão de -4 a 44°C no Norte do país e, -2 a 45 e até 48º ao Sul, que tem um clima típico do deserto.
ET - Como fazer para adaptar plantas típicas de um país tropical nesse clima?
Sellami - É possível adaptá-las. O que eu faço na Tunísia é um processo um pouco lento, as plantas ficam em estufa por um ano, dois ou até vários anos para que cresçam e depois são replantadas em lugares diferentes, com muito sol, por exemplo, muita sombra, daí é observá-las para descobrir, quais as espécies poderão suportar o frio. Por exemplo, a Annona muricata, nativa da África Central se adaptou na Tunísia, cresce muito bem, mas não dá frutos. Ela floresce no inverno, mas não resiste ao frio, caem todas as flores e folhas e brota novamente na primavera.
ET - E de que adianta uma árvore frutífera sem fruto? Desculpe pela comparação, mas não é como a figueira do Evangelho que não deu fruto e foi amaldiçoada por Jesus?
Sellami - O que eu faço com essa planta é usar as folhas para o chá. As folhas são ricas em antioxidante e é uma plana que pode ser usada na medicina...
ET - E não é que você tomou a atitude de Jesus, ao responder aos apóstolos sobre seu ato: “Em verdade vos digo que quem disser a este monte: Levanta-te e lança-te no mar, e não duvidar no seu coração, mas crer que se faz o que ele diz, assim lhe será feito. Por isso vos afirmo: Tudo quanto suplicais e pedis, crede que o tendes recebido, e tê-lo-eis.” Sabiamente, você usou as folhas para o chá.
ET - Vamos fazer uma citação e pedir o seu comentário. Essa rica biodiversidade que vocês exaltam do cerrado está quase desaparecendo. Segundo dados do IEF (Instituto Estadual de Floresta). Em 2005, cerca de 33,8% do território de Minas Gerais mantinha cobertura vegetal nativa. Hoje, esse percentual está assim dividido entre os principais biomas e suas principais tipologias: Cerrado: 19,94%; Campo: 6,60%; Campo cerrado: 2,56%; Cerrado Stricto Sensu: 9,48%; Cerradão: 0,61%; Veredas: 0,69%. Mata Atlântica: 10,33%; Campo Rupestre: 1,05%; Floresta Estacional Semidecidual: 8,90%; - Floresta Ombrófila: 0,38%. Caatinga (Floresta Estacional Decidual): 3,48%. No vasto município de Sacramento (3 mil Km²), segundo informações não confirmadas, resta pouco mais de 5% de cerrado. Vocês acreditam no fim desses biomas?
Sellami - Infelizmente, sim, se o mundo não cuidar os diversos biomas podem acabar. Se o Brasil não cuidar, não só o cerrado pode acabar, mas também outros biomas. A agricultura hoje, na minha opinião, não é agricultura, porque as pessoas estão cultivando alimentos, frutas, verduras de forma intensiva, usando muitos agroquímicos e matando todas bactérias existentes na terra e também fungos, insetos e até outros animais maiores, que nutrem o solo. Vejo que é tempo para trocar de agricultura, para ter uma cultura, um agricultura que crie um sistema com simbiose de toda espécie. Entendam 'simbiose' como 'a relação entre dois organismos de espécies diferentes. Por exemplo, as abelhas e as flores'. Se olharmos bem para a natureza, podemos achar uma solução para criar outras formas de produção de alimentos para todo o povo e ao mesmo tempo preservar a natureza, os fungos, bactérias, animais e a simbiose que existe. Acho que hoje, o melhor que temos a fazer é observar e copiar a natureza na sua forma de produção.
ET - Como defensor de todos esses biomas, como você assistiu às últimas queimadas na Amazônia?
Sellami - Com muita tristeza. Pega mal no meu coração, outras coisas no Brasil, como, por exemplo, as florestas que estão acabando por causa do cultivo intensivo de soja, milho, também de gado, mas algum dia terão que iniciar a preservação desses biomas, fazer uma, por exemplo, reservas de cerrados para proteger essas plantas que hoje existem e amanhã não existam mais.
ET - Qual sua opinião a respeito desse assunto, Techera?
Techera - Recentemente, estive numa audiência pública em São Paulo que tratou da questão dos defensivos agrícolas. Um grupo de pessoas, apicultores, perderam todas as abelhas. Um deles chegou a chorar, dizendo que todo o sustento dele e da família vinha das abelhas, o avião passou pulverizando e ele perdeu 500 caixas de abelhas, ou seja todo o seu investimento acabou de uma hora para outra.
ET - Que o digam, sem nenhuma responsabilidade, a alemã Bayer e a norte-americana Monsanto...
Techera - Sim, mas essas questões são complicadas, porque essas grandes empresas que deveriam estar investindo em novos tipos de tecnologia para a agricultura, não querem investir. Os defensivos, como, eufemisticamente, elas chamam, usados, poderiam ser outras coisas muito menos prejudiciais, mas não querem investir em pesquisas. Eu conheço muita gente que trabalha com a permacultura, que é um jeito novo, ela foi estudada para dar resposta à nova e crescente consciencialização da degradação ambiental global. E que não tem nada de nova, é apenas uma agricultura sustentável.
ET - Poderia citar algum exemplo de produtores rurais que trabalham com permacultura?
Techera - Sim, conheço o Ernest, que é suíço e faz um trabalho fantástico na Bahia. Ele pegou os ensinamentos dos avós, de seus pais e adaptou para a agricultura moderna. Ele planta cacau e exporta para o Suíça e outros países e tudo isso numa área que era totalmente devastada. Ele refez a floresta e plantou cacau. E isso chama a atenção para outro aspecto, que é o fato de os bons produtos do Brasil não ficam aqui, vão tudo para outros países, porque lá fora eles dão muito valor, pagam muito dinheiro para esse tipo de produto.
ET - Como mudar esse jeito de cultivar?
Techera - No jeito de se pensar, de lidar com a agricultura. Conheço também uma plantação de cana de açúcar totalmente orgânica que produz menos, mas não fica nada aqui no Brasil, é vendida em euro. O Brasil é muito desenvolvido em agricultura, talvez um dos melhores do mundo, então é preciso mudar o jeito de se pensar, de lidar com a agricultura. Não por causa dos produtores, mas do lobby das grandes empresas. Não existem investimentos das grandes empresas para novas alternativas.
ET - O que um técnico de áudio tem a ver com um engenheiro civil, que hoje se dedica a plantas e no que vem somando a esse trabalho?
Techera - Técnico de áudio não tem nada a ver com plantas, pelo contrário, fica o dia inteiro dentro de um estúdio, gravando, mixando, editando... Mas estou somando com os conhecimentos que tenho e daquilo que estou aprendendo em relação com as plantas do Brasil. Nós nos conhecemos e como ele queria conhecer mais da flora do Brasil, aceitei o desafio.
ET - Como tudo começou
Techera - Começamos a viajar para mostrar-lhe, efetivamente, o que tem aqui, por exemplo experimentar as frutas nativas, que são desconhecidas pelos brasileiros. Muitas frutas que acreditamos serem nativas do Brasil, não são. As frutas nativas do Brasil, o povo não conhece. O país consome muito mais frutas adaptadas que as nativas. Digamos que, juntei a curiosidade com a vontade de comer. Mas na verdade tenho uma chácara. Um tempo atrás fiz uma viagem para o Norte de Minas e comi uma fruta chamada popularmente de 'Cabeça de nego' (Annona crassiflora) aratircum, chamada também de articum, uma fruta do cerrado e aí me bateu a curiosidade. Como eu nunca consegui comer essa fruta antes? Comecei a ter contato com pessoas que têm essas plantas, que pesquisam, estudam e comecei a plantar também. Hoje tenho cerca de 400 espécies de plantas frutíferas plantadas. Eu conto por espécies, mas se considerar variedades são muitas, por exemplo, só da pitaya - nativas de regiões da América Central, sobretudo no México e também cultivadas em Israel, Brasil e China tenho 50 variedades.
ET - O que mais te preocupa nessa jornada?
Techera - Vou plantando e vamos ver no que vai dar. Sem deixar, claro, de me preocupar, especialmente por conta das pulverizações que acabam afetando as plantas. Isso é o que mais nos preocupa, a falta de conscientização das pessoas em relação à natureza em todo o país. Já viajei praticamente o país todo, desde o Acre até o Sul em busca de plantas, sementes, e essa poluição química ocorre em todo o país, mas não é só a pulverização o problema do país. Há também o desmatamento. Por exemplo, estive na Reserva Chico Mendes e vi uma parte que não pode ser desmatada e está sendo para colocar gado...
ET - Você já esteve outras vezes na cidade... Alguma surpresa desde a última visita?
Techera - Desde a última vez que estive com Álvaro, percebo que há ainda um pouco de natureza preservada. Mas tive surpresa, sim. Desta vez eu vi a árvore de mangaba - típica do bioma da Caatinga, mas também encontrada no Cerrado. Na primeira vez, vi que estavam grandes, viçosas, mas agora estão ficando pretas e morrendo. Qual seria o motivo? Alguma coisa tem, tem um motivo, pois tudo funciona junto. Você corta uma planta, talvez a outra morre. E a fartura que tinha antes, flores, frutos, árvores está acabando e isso é muito triste. E governo atual que a gente tem não está levando isso a sério, dando a devida importância, pelo contrário...
ET - Trocando a engenharia pelas plantas, o que o engenheiro Mohamed Sellami faz, comercialmente, na Tunísia?
Mohamed Sellami - Sim, é verdade, deixei um trabalho fixo numa grande empresa para me dedicar às plantas. E vivo das plantas, da comercialização de mudas de plantas estrangeiras. Comercialmente, tenho um viveiro na Tunísia e vendo as mudas de plantas que não existem na Tunísia e que são oriundas da Ásia, Tailândia, Índia, Austrália e outros países. Consegui sementes através de amigos desses lugares, fizemos trocas de espécies. Enfim, tenho uma coleção de plantas estrangeiras e vou propagando as espécies através da venda de mudas. E tenho também uma chácara onde produzo olivas (azeitonas), que vão para o mercado do meu país.
____________________ Terra das Oliveiras Destaque-se que a Tunísia é conhecida como a “terra da oliveira”. (O azeite tunisino ocupa o segundo lugar no ranking dos 10 melhores do mundo, entre mais de mil rótulos de 27 países que competiram no World Olive Oil Competition/2018, em Nova York. O Rahma Extra Virgem tunisino perde apenas para o uruguaio Azeite Uruguaio Colinas De Garzón Trivarietal. Mas o tunisino ganha em preço no Brasil, R$ 109,00 o litro contra R$ 88,00). _____________________ ET - Pra finalizar, além das plantas, levam também amizades, saudades desta terra que está completando 200 anos? Sellami - A cada visita em algum lugar, sempre deixamos e levamos alguma coisa. Diego Techera - Eu já estive em Sacramento outras vezes com Álvaro Juarez e levo tudo que já levei anteriormente. Sacramento é um maravilhoso, tem uma energia forte esta cidade. Não sei explicar, mas tem. Conheço outros lugares do Brasil, cerrados noutras regiões, mas aqui as cosias se comportam de forma diferente. Não sei, exatamente, explicar, mas sinto isso. Mohamed Sellami - É a minha primeira visita e com certeza foi tudo maravilhoso. Gostei muito de visitar Sacramento. Visitei muitos lugares no Brasil, em Videira e Joinville (SC), Monte Alegre, Batatais (SP), Patos de Minas (MG) e outras, mas com certeza... Mas Sacramento foi a que me inspirou mais que todas por causa das coisas que eu vi e senti. As espécies, a natureza... Uma energia muito grande. O povo muito amável, simpático. Aprendi muito com Álvaro Juarez. Fiquei muito feliz por estar aqui.