Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Final da entrevista: Carolina por José Carlos Sebe

Edição nº 1489 - 30 de Outubro de 2015

ET - Cinderela era uma Gata Borralheira que se transformou numa linda princesa, se casou e foi feliz para sempre. Já Carolina teve três filhos, um de cada marido, morreu pobre... O que a Carolina tem da Cinderela branca?

JS - Pergunta muito boa, porque quando dizemos Cinderela Negra, estamos adjetivando-a de uma forma comprometedora, porque ela não tem o destino da Cinderela branca, que se casa e vai para um castelo. Carolina é uma cinderela negra, que carrega todas as implicações de ser negra naquele tempo. Eu  não diria que ela morreu pobre, porque ela morreu bem melhor do que quando vivia na favela, tinha um sítio, onde reinventou a sua vida, embora algo muito longe do que ela merecia. Além disso,  temos que destacar que ela teve o seu dia de Cinderela, porque teve o 'baile do lançamento do livro'. Ela foi Cinderela por uma noite e acabou...

ET - Só um caso, professor: No lançamento de O Quarto de Despejo, o ex-prefeito de Sacramento, José Alberto Bernardes Borges, então jovem estudante do Colégio Arquidiocesano, em São Paulo, esteve nesse dia na Livraria Cultura e se encontrou com Carolina. Identificando-se como sacramentano, ela respondeu: “Como vai aquele pão sem fermento?'. 

JS - Quero comentar isso pra dizer que  ela realmente guardou uma certa mágoa de Sacramento, mas no final da vida, ela  escrevia receitas e lá encontramos, por exemplo, 'pão de ló  de Sacramento', o que demonstra que ela se lembrava de Sacramento. Acredito  que ela tivesse uma memória afetiva diferente da memória física. 

ET - O Sr. fala, professor, de livros 'comportados' (aqueles que não arranham ordem nenhuma) e, de livros 'perigosos' (que sempre propõem mudanças, perturbam a ordem e os poderes estabelecidos). Quarto de Despejo é um livro comportado ou perigoso?

JS – Perigoso. E é perigoso até hoje, mais de 50 depois. Ele incomoda. E incomoda a quem? Não só incomoda governos, mas incomoda a gente, porque nos mostra a ausência do Estado nas relações de inclusão social, na qual, o Estado só está presente no papel. Releiam Quarto de Despejo e verão que é o quadro atual. Aliás, Quarto de Despejo é até elogio, porque aquilo era o quintal, na mais absurda miséria.  O Estado não estava e não está presente, ele é só policial, assim como no Quarto de Despejo, a polícia  ia para pôr ordem e vai embora. E tudo continuava do mesmo jeito, quer dizer, não havia e não há programas de inclusão social e isso vai incomodar sempre...

ET - O que o Sr. quis dizer com 'Carolina, emblema do silêncio'?

JS - É comum me fazerem essa pergunta, porque a palavra emblema, quase sempre complica o entendimento. Eu entendo 'emblema do silêncio', porque ela foi silenciada várias vezes e, acredito que, agora que temos uma democracia mais institucionalizada isso não aconteça tanto. Qualquer coisa de censura hoje, o pessoal grita. Carolina foi silenciada de várias formas: pela elite, que pensava: 'isso não é literatura'; pelo Governo Militar, porque não cabia no modelo proposto para a  época. E, sobretudo, o  silêncio de Sacramento que nunca incorporou a responsabilidade de divulgá-la. Foi preciso que alguém lá de fora fizesse isso. E isso dói, porque o 'ninho'  é aqui.

 

ET - Que comparação o senhor faz entre Cinderela Negra e Diário de Bitita?

JS - Diário de Bitia é o livro mais complicado da História do Brasil e está na hora de tratarmos dessa questão. O Diário foi escrito pela Carolina, num momento em que ela mesma achava que a vida dela estava só num momento presente. Diário é o retrato do cotidiano e isso não dá a dimensão do que ela era. Ela sentiu necessidade de escrever o diário, mas aí veio um grande silêncio, que é o silencio da recepção do livro dela, que não foi aceito. Então, ela ficou com aquele livro encalhado em casa. Só que ele se chama Diário de Bitita, mas não é um diário. Ela sempre teve muita aceitação nos Estados Unidos. Só que, veja a loucura, alguém veio da  França, pegou o Diário de Bitita, levou, traduziu para o francês e, depois que foi publicado como Journal de Bitita, nós o traduzimos do francês. Aí reside a loucura maior, nós traduzimos um livro, cujo original era em português, mas foi  publicado em francês,  como Journal de Bitita,  cuja tradução não é 'Diário', mas, sim, 'Jornal' mesmo. Diário de Bitita tem uma história extraordinária pela sua história, não pela tradução. Não é Carolina que está ali e os originais, pelo que sabemos, estão na França e nunca ninguém conseguiu revê-los. Isto é, quando digo que Carolina não está ali, porque tudo foi corrigido, reescrito. 

ET – Qual a contribuição e sua dimensão que essa e outras obras de Carolina dá para a comunidade acadêmica? 

JS - Gosto muito dessa pergunta, até porque gostaria de desviar. É lógico que a universidade, a academia vai acolher esse debate todo. Afinal não é brincadeira, não é pouca coisa, estamos falando de uma produção sobre Carolina que conta com 800 artigos, quer dizer, ela aflorou numa vasta leva de pessoas. São centenas de trabalhos sobre Carolina e sua obra. Mas o que eu gosto mais é de pegar essa questão pelas bordas, ou seja, os jovens estão lendo Carolina. O movimento negro assumiu a figura polêmica da Carolina, porque ela também tinha uma grande carga de crítica à questão negra, descrevia a si mesma como alguém muito diferente dos outros favelados, e afirmava “que detestava os negros da sua classe social”. Fazia crítica às mulheres, ao migrante e, todos estão retomando essa literatura de deslocamento (de confrontamento, de identidade cultural, de sistema político). A grande beleza desse momento é essa Carolina plural, ela não é só academia. Aliás, acredito até que a academia vem atrás desse movimento social de exaltação de Carolina.  

 

ET - Professor, hoje vivemos um boom de políticas sociais, do pós-constituição, que não existiam no tempo da Carolina... Se viva fosse, qual seria a contribuição de Carolina nesse processo. 

JS - Muito boa pergunta, porque, mesmo Carolina não estando presente fisicamente,  tem dado a sua contribuição. Ela está presente, por exemplo, em discussões sobre cotas. E fico imaginando que se ela tivesse sido beneficiada com cota, teria tido um palco bem mais iluminado para se impor. Ela serveria muito para a discussão de políticas públicas. Gosto muito de trabalhar com o conceito de 'desvitimização' e a Carolina se prestaria muito para isso. Não podemos continuar ver, por exemplo, o movimento negro ou das mulheres como coitadinhos...

ET - Carolina veio de favela e é o que é... Vemos hoje a violência proliferando pelo país, os problemas das favelas com as gangues, que na verdade não são coisas de favela... O que falta para que as camadas mais pobres, mais carentes; o que falta para esse pessoal que está se prostituindo, se drogando, se dedicando ao mundo do crime se espelhe em Carolina?

JS - Excelente pergunta e poucas vezes alguém perguntou isso.  Falta 'Trabalho'. Falta oportunidade de trabalho. O grande problema do reenquadramento da população brasileira é uma definição ampla do que é trabalho e oportunizar isso, abrir campos de trabalho. E nesse sentido, Carolina nos dá um exemplo de calar a boca de qualquer um. Se existia alguém que trabalhava, era ela. Carolina trabalhava, ela não aceitava a indignidade da vida. Ela ia à luta, pela sua dignidade, pegava lixo, aproveitava o que achava para alimentar e vestir os filhos. Carolina foi a pioneira na reciclagem no país. o que eram os cadernos dela? Lixo. Ela os catava no lixo e os transformava em livros. Carolina não brigava, ela queria ordem, dava lições para o pessoal da favela, ameaçando botar os nomes dos moradores  no seu livro. Audálio Dantas cobria a abertura de um parque municipal e, imediatamente, após a cerimônia uma gangue de rua chegou e reivindicou a área, perseguindo as crianças. O jornalista viu Carolina de pé na beira do barraco gritando: "Saiam ou eu vou colocar vocês no meu livro!" E todos saíram de lá. Por isso, não adianta falar em educação, só ela não adianta. Só polícia não resolve, é preciso ter dignidade e isso a Carolina buscava. Ela não se sujeitava à indignidade da vida.  Carolina era líder.

ET - Para finalizar, professor, lembrando algumas grandes mulheres contemporâneas de Carolina, como Pagu, Simone de Beauvoir,, Leila Diniz, Clarice Lispector... quais seriam as virtudes de Carolina em relação ao gênero feminino?

JS - Não diria, virtudes, mas ‘uma virtude’: o lado humano, pois Carolina não era essa guerreira, militante, que não tinha contradições. Ela tinha contradições, era um ser humano. Ela, ao contrário de outras escritoras ou outras personalidades femininas posicionadas, que têm uma lógica, ela não. Ela é cheia de contradições, ela, por exemplo, tinha preconceitos contra nordestinos, isso fica claro na obra dela. Ela tinha preconceito em relação ao negro. Agora, isso é defeito? Não. É característico dela e, exatamente essa mulher do povo, com todas as suas contradições, que consegue impor uma linguagem lírica, que tem um projeto de Brasil, que nenhuma outra escritora brasileira tem, que fala que o governo deveria fazer isto ou aquilo?