Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Aos 90, ele tem a cabeça de um Moleque do Borá

Edição nº 1571 - 19 de Maio de 2017

O advogado e escritor Saulo Wilson, filho de Homilton Wilson e de Margarida Gianni, irmã dos também saudosos Pedro e Antonio Gianni, nasceu em Sacramento, assim como os irmãos Carlyle,  Olavo (falecido), Gianete, Marcos, Paula Márcia, Paula Virgínia, Saul, Margarete  e Max. E aqui viveu parte de sua vida, ausentando-se para os estudos, em Franca até 1944. Retornou às terras do Borá onde permaneceu até 1952, quando se mudou para o Rio de Janeiro, passando ali longos anos. Depois de 27 anos mudou-se para São Paulo, permanecendo na capital paulista mais uma boa temporada, de 79 a 1990, quando, finalmente, finca pé na terra natal. Por questões de saúde e uma melhor assistência dos filhos, permanece em Goiânia. Mas diz que não está morando lá. “Estou lá, por enquanto, me tratando”. E sempre que pode e em ocasiões especiais, como o 1º de Maio, retorna à terra que ama como ninguém, na companhia dos filhos, sempre muito solícitos e atenciosos. Aproveitamos o aniversário de nascimento de seu tio, Eurípedes Barsanulfo, para fazer esta entrevista. 

 

ET - Saulo, vamos começar lá atrás, na sua infância. Os seus estudos, amigos, travessuras...

Saulo - Inicialmente, aos sete anos ingressei e estudei um ano no Colégio Allan Kardec, que era dirigido pelo tio Waltercides Wilon, irmão do tio Eurípedes. No segundo ano, tio Waltercides morreu e eu fui estudar no Liceu Sacramentano, Escola Comercial Anexa, do senhor Idelfonso Teles e, no Liceu, fiz o segundo e terceiro ano. No ano seguinte, 1936, papai reabriu o Colégio Allan Kardec e eu voltei, cursando ali o 4º ano e o Admissão, que me deu acesso ao Ginásio (5º ao 9º ano hoje – grifo nosso), que cursei em Franca, graças ao Dr. Tomás Novelino, muito amigo do papai, me levou  para o Ginásio do Estado de Franca, que hoje é o Instituto Comercial Torquato Caleiros.  Morei na casa do Dr. Tomás durante todo o curso e lá fiquei até concluir o Científico, o que chamam hoje de ensino médio ou Colegial, em 1944. Na época havia dois cursos, o Científico e o Clássico. O Científico era  voltado para a área de exatas e o Clássico, para a área de humanas. E, optei pelo científico, porque queria estudar engenharia...

 

ET - Mas acabou fazendo  Direito...

Saulo - Sim, mas não foi de imediato, aconteceu o seguinte. Quando terminei o Científico, papai não tinha recursos pra me mandar estudar fora. A família era grande e aí fiquei sem estudar. Voltei a Sacramento e fui trabalhar. Eu me inscrevi num concurso para o Banco de Credito Real de Minas Gerais, e fui aprovado, em 1952. Só que meu irmão, Carlyle, que já morava no Rio de Janeiro e terminava o curso de Direito, me convenceu a me mudar para o Rio de Janeiro. 

 

ET - E onde fica a Perpétua nessa história?

Saulo - Já éramos casados e com uma filha de um ano. O banco me transferiu e nos mudamos para o Rio. No ano seguinte, 1953, fiz vestibular para Direito, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, que na época era Universidade do Distrito Federal, (Nessa época, o Rio de Janeiro era a capital do Brasil, até 1960, quando Brasília foi inaugurada - grifo nosso) e me formei em 1957, estudando em curso noturno.

 

ET - E aí, você e Carlyle montaram uma banca?

Saulo.  Não. Continuei no banco e o Carlyle continuou trabalhando como advogado do departamento jurídico do Banco Nacional de Descontos e do Banco do Distrito Federal. A banca era comandada pelo Dr. Nelson de Magalhães   Porto e, mais uma vez o Carlyle me convenceu a deixar o Credireal e ir para departamento jurídico   do Banco Nacional de Descontos, com o aval do Dr. Nelson. Depois fui também para o Banco do Distrito Federal, que era presidido pelo seu maior acionista, o deputado federal, Dr. Drô  Andrade de Melo e Silva, que foi a liquidação extra judicial. E como o banco precisava de um advogado para a liquidação me contratou. E ali permaneci até 1963, quando pedi demissão para  trabalhar por conta própria...

 

ET - Nesse ano, então, nasceu a banca dos irmãos Wilson?

Saulo - Também não. Montamos uma fábrica (risos). O Carlyle, eu e um amigo, Dirceu Cândido da Silveira, montamos uma fábrica de camisas, chamada Original Indústria e Comércio S/A, porque nós tínhamos com meu irmão Marcos, uma loja de artigos masculinos,  na Galeria Menescau, em Copacabana. Eu fui dirigir a fábrica de camisas e lá fiquei até 1970, quando vendemos a Original. 

 

ET - E finalmente veio o escritório...

Saulo - Não propriamente um escritório de advogados, mas Carlyle e eu criamos a Companhia Brasileira de Projetos e Estudos Técnicos e, passamos a trabalhar na assistência a empresas que queriam vir para o Brasil, aproveitando uma política de incentivo do governo brasileiro às indústrias que se instalassem no Brasil, dando, inclusive, permissão para importarem equipamentos isentos de impostos. E tivemos sucesso, várias empresas que vieram para o Brasil se serviram de nossos serviços. Algumas estão aí até hoje, como.

 

ET – Estamos falando aí de que ano?

Saulo – Da década de 70, no final dela, em 1979, nós tínhamos um escritório em São Paulo, a Compete, que ficou sem diretor e alguém teria que assumir aquele escritório. E fui eu, mas por pouco tempo.

 

ET – Falando em tempo, quando retorna às suas origens e por que veio para Sacramento?

Saulo - Muito simples de explicar. Eu já estava aposentado e tinha prometido a Corina Novelino que viria para Sacramento ajudá-la. Meus filhos todos criados e formados. Em fevereiro de 1980, Corina morre então era hora de voltar para Sacramento.  E nisso, Dr. Tomás Novelino, que era o grande mantenedor da Fundação Lar de Eurípedes, queria montar uma fábrica de calçados na cidade. Eu assumi a direção da Fundação Lar de Eurípedes e começamos a trabalhar para trazer uma unidade da fábrica de calçados da Pestallozzi para Sacramento. Mas, ao invés disso, fundamos a Fábrica de Calçados Eurídes, que começou a funcionar onde hoje é o Cartório do Sérgio Araújo, em frente ao Fórum, até que veio a sede própria, um grande galpão com as dependências administrativas, construído no bairro João XXIII, ao lado do Educandário. Chegamos a produzir ali 1.200 pares de sapatos por dia...

 

ET - mas que, infelizmente, fechou. Foi por conta do confisco da poupança feito por Collor e Zélia, não foi?

Saulo – Além do confisco, o Plano Collor, de 1990, desenvolvido pela ministra Zélia Cardoso de Melo, provocou uma super desvalorização do dólar, de R$ 3,00 para R$ 0,70. E como a maior parte dessa produção destinava-se à exportação, o câmbio nos dava uma remuneração muito boa. Nós vendíamos o sapato a 12 dólares que, convertidos equivaleria a 36 cruzados ou cruzeiros novos, não me lembro. Mas de repente a casa ruiu.  Foi um descalabro, do dia pra noite, o dólar baixou para R$ 0,70. Foi um prejuízo muito grande...

 

|ET - Mesmo assim, a fábrica continuou ativa por alguns anos...

Saulo - Sim, fomos mantendo a fábrica com a produção, até que em 1996, por várias razões, me desliguei da Fundação. E nesse mesmo ano, a advogada Ivone Regina, presidente do Partido Liberal, me convidou para fazer parte do partido. Interessante é que quando eu morava no Rio, votava no PL. Então, comecei a participar das reuniões, até que vieram as eleições no final de 96. O PL coligou com o PT e o Biro foi eleito.

 

ET - E que te levou para a Prefeitura como secretário.

Saulo - Exatamente. O Biro me chamou para trabalhar com ele, me colocando na Secretaria de Cultura e Turismo, ocupando depois outras secretarias. E foram oito anos de trabalho na Prefeitura, com muito boa vontade e entusiasmo, de 97 a 2004. Mantive um relacionamento muito bom com o prefeito Biro, desenvolvendo, modéstia à parte, um profícuo trabalho nessa pasta. Foi no mandato do Biro que criamos o Circuito dos Lagos, da Canastra. Foi um tempo bom. Depois o Biro me mudou para a Secretaria de Administração, depois Secretaria de Governo, onde permaneci junto dele até o final do governo. Saindo da prefeitura, fiquei sem fazer nada. Minha vida profissional terminou aí. Minha aposentadoria dá pra eu viver muito bem. 

 

ET - Mudando o rumo da conversa, você, sobrinho de Eurípedes Barsanulfo, sua ligação com a doutrina Espírita sempre foi muito forte. E, ela vem, claro,  de família. Seu pai, mãe, irmãos também tiveram essa ligação com o Colégio Allan Kardec? 

Saulo - Todos os meus irmãos fizeram o curso primário no Colégio Allan Kardec, que papai dirigiu até 1944, quando passou a direção para a Corina Novelino. Papai, além   de  dirigir o Colégio, era professor de Português da Escola Normal, da dona Maria Crema. Depois que papai deixou a direção do Colégio, em 1944, ele foi convidado pelo prefeito da época, Dr. Juca (José Ribeiro de Oliveira), para ser Agente Municipal de Estatística, submetido ao IBGE. Com a mudança de governo, papai foi incorporado aos funcionários do IBGE e ficou em Sacramento até 1954, quando se mudou para o Rio de Janeiro e foi trabalhar na Secretaria de Estatística da Produção, no Ministério da Agricultura, onde se aposentou. 


ET - Sacramento é uma terra de santos e não importa o credo, não? Nesse oratório de grandes almas do bem, sacramentanos que se entregaram à caridade, começamos com Eurípedes Barsanulfo; o padre Vitor Coelho de Almeida, cujo processo de beatificação tramita no Vaticano; o pastor Leonardo Nye; padre Antonio Borges de Souza, Corina e Heigorina... Você concorda?

Saulo - Concordo, plenamente. Todos tiveram trabalhos meritórios, sempre fizeram o bem para Sacramento, para o povo. E faziam o bem,  mesmo, eles viveram para isso. Uma coisa que estou admirando muito é o Papa Francisco. Eu digo, como espírita que sou, que ele é um espírito evoluído. Ele está fazendo uma coisa que ninguém nunca fez ou colocou em prática, o ecumenismo, o intercâmbio entre as religiões, isso é muito importante, porque religião cada um tem a sua, mas todos creem em Deus. Vejo que ele está fazendo uma política ecumênica diferenciada, muito boa. Eu admiro muito o  Papa Francisco.  

 

ET - Como ele bem diz, “O diálogo inter-religioso é uma condição necessária para a paz no mundo e, por conseguinte, é um dever para os cristãos”. Mas ainda dentro dessa questão religiosa, você concorda com o que dizem muitas pessoas, que paira sobre Sacramento uma aura especial? 

Saulo. Concordo e muito. E interessante isso, inclusive, como bem lembra o Amir Salomão, no seu livro, 'Maria Ausente', citando Cônego Hermógenes de Cassimiro de Araújo Brunswick, escreveu, em documentação que data da fundação da cidade, 1820. Disse o vigário do Desemboque que “Sacramento foi fundada para ser pasto espiritual a bem das almas”. 

 

ET - Ainda bem que fora da política a cidade se respeita e convive muito bem. Afinal, a exceção dos imigrantes, que chegam a partir do final do século XIX, somos todos meio aparentados do Cônego, que deixou nove filhos...

Saulo - Sim, e uma coisa interessante que quero dizer e que pouca gente sabe, é que   o meu sobrinho, Anderson Wilson, do Rio de Janeiro, é especialista e analista de formação  de computadores. Ele iniciou a árvore genealógica da família do Vô Mogico, pai de Eurípedes, e ele chegou, na ascendência familiar, ao sexto Senhor de Távora, Eduardo de Campos, em 1262. Ele é o ascendente de toda essa família. Ele é tetra, tetra, tetra, tetra avô do Capitão Ferreira, pai do Cônego Hermógenes. 

 

ET - E o Saulo escritor, autor do Reino da  Bucolândia, como vai sua verve literária?

Saulo - Aliás, o título original do livro era “A família Bucólica do Reino da Bucolândia”. Além desse, comecei a escrever um romance histórico baseado na vida de Cônego Hermógenes, Vigário do Desemboque, fundador de Sacramento, professor gratuito de Latim, Moral e Teologia, Tenente Coronel da Guarda Nacional. Foi também um grande político, vereador, deputado à Assembleia Provinciana de Minas e Deputado às Cortes de Lisboa e pai de família. No seu testamento reconhece nove filhos como herdeiros... Enfim, cheguei num ponto da história em que o Aniceto é bisneto dele. Mas, depois que minha musa inspiradora, minha querida Perpétua me deixou, não tenho mais como acabar o livro. Já insistiram comigo, mas não sinto memória. Fora isso, de vez em quando, escrevo alguma crônica.  

 

ET - Falando na Bucolândia, você viveu aqui, nos tempos de uma cidade provinciana, de belos casarões, todas as ruas centrais de paralelepípedos, de grandes e belas pedras de basalto rosa nas calçadas... Agora, tudo se deteriorando.  Como você vê essa destruição desse rico patrimônio?

Saulo - Olha, parece uma coisa difícil de compreender, mas não. A mania das pessoas é acabar com o que é antigo. O Brasil não criou essa cultura de preservação histórica ainda. No Rio de Janeiro é comum demolirem prédios, casarões e só deixarem a fachada  e vemos isso em Sacramento também. As pessoas acham que fazendo isso a área se torna mais valorizada,  quando na verdade ocorre o contrário. Lembro-me de Sacramento, com seus belos casarões no seu centro histórico. Ali na praça Getúlio Vargas só resta um, onde mora a Maria Olímpia Brigagão, assim mesmo, meio descaracterizado. Nossos belos passeios calçados por pedras de basalto rosa que medem 1 x 0,50 m são substituídas por lajotas sem graça ou pedrinhas portuguesas. Aliás, o calçamento com essas pedras é lei municipal, mas que não é cumprida. 

 

ET - Retirar uma pedra dessa, esquadrejada com tanta precisão, tem que ser um grande artista, não... 

Saulo - Sem dúvida, a substituição dessas pedras é uma falta de respeito a esses artesãos. Eu me lembro do primeiro deles, o português chamado Abel Ferreira, no governo do Dr. Juca, quando ele autorizou o calçamento da primeira rua na cidade, a rua do Comércio, hoje Visconde do Rio Branco. Foi ele o primeiro calceteiro da cidade. Ele veio para Sacramento para executar esse serviço.  Depois, muitos aprenderam com ele, o Temístocles, o Desidério...   É uma tristeza ver a destruição. Infelizmente, a continuar assim, Sacramento vai chegar num ponto que não terá mais história a não ser nos livros.  Ao contrário do que vemos em outros países, com uma história viva. E aí nos restará sair daqui pra ver essas belezas fora do Brasil... 

 

ET - Vamos terminar falando dos seu 90 anos... Caraca, você é quase centenário!! Uma bela idade, não?

Saulo - Eu não posso deixar de agradecer a Deus, porque tudo que nos acontece na vida é pela vontade d'Ele e pelo nosso comportamento. Deus não nos castiga, não nos pune, porque Ele é infinitamente bom e justo. Ele é misericordioso, nós é que nos castigamos. Os empecilhos que nos acontecem são frutos do nosso comportamento. E ainda tenho esperança de viver mais alguns anos...

 

ET - Louvado seja Deus, amigo. Tomara que estejamos aqui para fazer a entrevista dos 100!! Mas como foi apagar as 90 velinhas do bolo?

Saulo - Ah, e que surpresa! A minha neta Larisse de Sá Roriz Gonçalves, filha da Virgínia, que mora em Goiânia, começou a entrar em contato com todos os sobrinhos, netos... Tenho uma neta que estuda em Xangai (China). Enfim, Larisse contatou todos os meus descendentes, dos três filhos aos  12 netos e mais oito bisnetas. Some-se a eles os maridos, esposas, juntaram todos. Só faltaram dois netos, a que está na China e um que mora em Fortaleza. Foi uma festa, uma coisa muito boa. Mas já falei, a festa de 100 anos quero comemorar em Sacramento, se Deus quiser.