Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Biógrafo visita Sacramento em busca das origens de Carolina Maria de Jesus

Edição nº 1530 - 12 de agosto de 2016

O biógrafo Uelinton Farias Alves (Tom Farias) e a atriz e produtora Maria Gal estiveram, pela primeira vez,  em Sacramento no último final de semana, com o objetivo de conhecer as origens de Carolina Maria de Jesus, para completar uma nova biografia da escritora e, futuramente, rodar um longa metragem sobre sua vida. Em entrevista ao ET na redação do jornal, dia 23 último, Tom e Maria falaram sobre os dois projetos.
Biógrafo e professor de Literatura com especialidade no século XIX, já com 11 livros publicados, Tom começa dizendo que Carolina o fascinou.
“- Carolina foi criando uma fascinação em mim. Em 2014, fui curador de uma festa internacional literária em São Paulo, cuja patrona era Carolina. Na época, republiquei dois livros, Quarto de Despejo e Diário de Bitita, para os quais escrevi dois ensaios. Como colunista literário do Jornal O Globo, no Rio, escrevi mais coisas sobre Carolina e  sobre pessoas que têm a ver com Carolina, como a mineira Conceição Evaristo, que tem muito de Carolina”, comparou, afirmando que seu interesse é aprofundar no estudo sobre a autora negra sacramentana.
 “- Sempre quis fazer algo mais aprofundado sobre a Carolina. Como biógrafo, quero, realmente, contar a história de Carolina, do ponto de vista de seu protagonismo como escritora, como mulher e como mito”, justifica.
E o livro já tem título: “Carolina Maria de Jesus: a mulher, a escritora e o mito”, adianta Tom Farias, que não se importa em dar detalhes da obra. “Começamos lá no século XIX com a Abolição da Escravatura (1888), com enfoque muito grande em Minas Gerais e Sacramento, e desemboca na crise de asma que a levou à morte em Parelheiros (SP)”, resume, destacando o início de sua carreira como escritora.
 “- Contamos um pouco daquele núcleo que vai de 1960 até final de 70, quando ela ascende literariamente e provoca muita ciumeira, muita discussão e polêmica, que é a publicação de Quarto de Despejo e, depois,  a publicação de outros livros, o ostracismo, as dezenas de tentativas de suicídio que ela tentou provocar. O livro tem 300 páginas, mais ou menos”, revela.
 Questionado se o livro já está pronto, Farias ri e garante que não. “Ele está na minha cabeça. Eu tenho muita facilidade para escrever e vou concebendo a história  na cabeça, como se fosse um filme. E, não poderia deixar de vir à cidade natal de Carolina, porque é esse o ambiente do começo”,  diz mais, falando sobre a sensação vivida nas ruas de Sacramento.
 “- Parece que vejo Carolina andando por aqui e isso vai ajudar muito nessa história que vou contar de Carolina. Quero que ela emocione as pessoas e que elas tenham uma visão diferente de Carolina. A sua defesa sempre foi feita por pessoas que não a conhecem, que não sabem que ela foi uma mulher muito contraditória, mas essa contradição é importante. Outra coisa importante é a sua origem. De onde ela veio? Qual a sua origem de fato? Ela vem lá dos escravos, provavelmente do final do século XIX... Vou desvendar essa mulher, que pouca gente conhece e que quase todo mundo lê”, frisa.
 De acordo com Farias, as pessoas leem Carolina, mas não conseguem decifrá-la.  “Como é que uma mulher pode contar, de dentro de uma favela, em restos de caderno e restos de lápis, uma história que se tornou universal, que inspirou o filme 'Preciosa”? - indaga”, demonstrando grandes expectativas com seu trabalho.
 “- Há 500 Carolinas no seu espólio e não vou conseguir fazer isso num livro. Para se ter ideia,   fiz a  biografia do precursor do Simbolismo no Brasil,  Cruz e Souza, apelidado de   Dante Negro ou Cisne Negro, publicando seis livros. Só no último é que consegui chegar ao que imaginava ser Cruz e Souza. Então, com Carolina, quero fazer uma coisa que atinja, talvez,  70%, 80% da contribuição que ela representou e estimular outros pesquisadores a seguir nos estudos”, finaliza.
 A previsão  de Tom Farias é de que o livro seja lançado entre abril e junho de 2017, ano que se completam 40 ano de falecimento da escritora.

 

Um longa metragem sobre Carolina

Maria Gal, baiana de Salvador, uma mulher negra muito linda com uma grande história de vida, acompanhando Tom a Sacramento, dá total apoio ao trabalho do biógrafo. “Desde o primeiro momento que li o Quarto de Despejo me identifiquei com Carolina, que me tocou bastante pela mulher visionária que ela foi, a sua força para vencer as dificuldades e os preconceitos da época. Carolina ultrapassou limites difíceis”, pondera.
 Conta Gal que a ideia nasceu mesmo quando se mudou para o Rio de Janeiro. “Na época, me mudei para o Rio de Janeiro e de alguma forma me veio uma intuição: por que não transformar a história de Carolina num filme? Se ela fosse norte-americana, com certeza, já havia se tornado filme”, pondera, reconhecendo o grande trabalho que tem pela frente. “Sem dúvida, trata-se de um grande desafio, um projeto para uns cinco anos de trabalho e, no mínimo umas 100 pessoas envolvidas”.
 De acordo com Gal, a direção será de Sérgio Machado, cineasta brasileiro, diretor do filme 'Tudo que aprendemos juntos', estrelado por Lázaro Ramos, Sandra Corveloni, Fernanda de Freitas etc. “É um cineasta com vários trabalhos  muito bons no Brasil, como 'Cidade Baixa', com Wagner Moura, 'Madame Satã', filmes que de  alguma forma, dialogam com o universo de Carolina, o universo negro no país”, enfatiza, lembrando o encontro com o cineasta para rodar o filme.
 “- Foi fantástico! Quando lhe falei que eu tinha os direitos para o filme, ele revelou: 'Você não vai acreditar, quando eu era criança, minha mãe leu o quarto de Despejo pra mim'. E de fato, ele era criança no boom do Quarto de Despejo”, salienta, informando que, mesmo envolvida em vários projetos já está concorrendo a um edital de desenvolvimento e contatando distribuidoras.
 Sobre o filme, Gal destaca alguns detalhes já idealizados. “É uma história clássica de ficção inspirado na sua vida e obra e que já tem um título provisório, 'Carolina Maria de Jesus em busca de um sonho'. Agora é desenvolver um roteiro...”.
 Maria Gal, é claro, fará o papel de Carolina Maria de Jesus. “Com certeza, eu serei a Carolina e Sacramento estará no filme, porque faz parte da história de Carolina. a nossa vinda aqui tem a ver com isso, nos aproximar dos locais por onde ela passou, para termos referências e, também, apresentar nosso projeto às empresas e ao poder público, em busca de patrocínio e apoio, pois estaremos divulgando a cidade com locações que serão realizadas em sua cidade natal”.
 E Maria Gal completa enaltecendo a importância do filme. “Pretendemos colocá-lo na tela daqui há três, quatro anos, por conta da complexidade que é fazer isso, sobretudo, a questão econômica. Mas é importantíssimo que ele seja realizado, para revelar Carolina para o Brasil, porque ela é muito mais conhecida lá fora, dar representatividade à força que ela tem. E é importante até que a cidade de Sacramento de alguma forma colabore com esse projeto”.
 A vida profissional da atriz foi iniciada no teatro. “Dediquei-me muito tempo ao teatro, comecei em Salvador, depois São Paulo com Zé Celso e teatro de grupo. Na mudança para o Rio de Janeiro ampliei meu trabalho em audiovisual, aí tive participação em 'Gabriela', 'Jóia Rara', na nova versão de 'Dona Flor e seus dois maridos', e, mais recentemente, gravei a série, 'Três  por cento', que vai ao ar pelo Netflix, inaugurando a primeira série brasileira do provedor global de filmes e séries de televisão via streaming; e, ainda,  'Conselho Tutelar', que foi ao ar pela Record”, enumera.
Tom Farias, que em 06/09/2014,  escreveu em O Globo, o artigo, 'A literatura de Carolina Maria de Jesus: do Quarto de despejo para o mundo',  comentando  uma referência do historiador  José Carlos Sebe Bom Meihy, sobre a grande imprensa e a crítica em cima de Carolina, destaca: 
 “- Eu continuo afirmando que há uma hipocrisia muito grande sobre Carolina. Primeiramente, ela foi um sucesso literário num período onde ficavam Jorge Amado, José Lins do Rego, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, que eram os autores do momento, que eram muito lidos, solicitados... E, de repente, Carolina, num período muito pequeno, vendeu exemplares como poucos deles. Houve na época, autores que duvidaram que o livro tivesse sido escrito por ela. Achavam que era uma peça publicitária feita pelo Audálio ou outros autores, quer dizer, se ela não tivesse os manuscritos para provar... Carolina, além de sofrer esse preconceito que era a dúvida da criação, que é o pior dos preconceitos, ela era mulher, negra, e favelada e, para referendar tudo, semianalfabeta”.
 De acordo com Farias, apenas dois escritores reconheceram Carolina publicamente. “Uma das únicas pessoas que deram reconhecimento público a Carolina, foi Clarice Lispector e, também, Manuel Bandeira. E isso continua perdurando. Hoje a discussão é saber se Audálio mexeu ou não, o que é menos importante. O importante é que ele conseguiu de alguma maneira projetar uma mulher que não tinha nenhum protagonismo, conseguiu transformá-la num exemplo para muitas pessoas na época.
 Lembra o biógrafo que há depoimentos de editoras revelando que houve pessoas, gente comum, que  chegavam com manuscritos querendo publicar. “Enfim, Carolina acabou se tornando uma voz para a nação que era muda e quebrou um paradigma muito grande: O que é uma favela?”, afirma e completa: “Ainda assim há a hipocrisia, preconceito, pessoas distorcendo Carolina e, o nosso papel, eu na biografia e a Maria Gal com o filme é mostrar um pouco dessa verdade”.
 Questionada sobre como a cidade poderia colaborar, Maria Gal acredita que os órgãos   de Cultura da cidade podem colaborar de alguma forma financeira. “A infância de Carolina será feita aqui e, certamente, vamos precisar de grande apoio da Prefeitura.  Será muito mais fácil filmar aqui do que em um cenário de uma cidade cenográfica, para dizer que é Sacramento... Sem contar que isso poderá agregar valor para a cidade”, sobretudo em termos financeiros através do turismo cultural.