Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Defesa dos invisíveis trabalhadores anônimos

Edição nº 1582 - 04 de Agosto de 2017

Por mais ameaças que pesem sobre a Casa Comum, a Terra, atacada em todas as frentes pelo tipo de cultura que desenvolvemos nos últimos dois séculos, explorando ilimitadamente seus bens e serviços limitados, mais diretamente para a acumulação material de poucos - apesar disso tudo - ela continua generosamente nos ofertando beleza de frutos, flores, plantas, animais e vasta biodiversidade.

 A mim impressiona as pequeninas flores vermelhas e amarelas de três vasos que pendem de uma das minhas janelas. Elas, ridentes, estão sorrindo para o universo. Isso me remete à frase do místico poeta alemão Angelus Silesius que diz: “a flor é sem porquê, ela floresce por florescer, não se preocupa se a olham ou não, ela simplesmente floresce, por florescer”.

Sabemos que somente 5% da vida é visível. O restante é invisível, composto de micro-organismos, bactérias, vírus e fungos. Já escrevi isso aqui e o repito nas palavras de um dos maiores biólogos vivos Edward O. Wilson: “em um só grama de terra, ou seja, menos de um punhado, vivem cerca de 10 bilhões de bactérias, pertencentes a até 6 mil espécies diferentes”(A criação: como salvar a vida na Terra, 2008, p.26). Se assim é com apenas um punhado de chão, imaginemos os quintilhões de quintilhões de micro-organismos que habitam no subsolo de toda a Terra. Por isso tem razão James Lovelock e seu grupo ao afirmar que a Terra é um superorganismo vivo. Não no sentido de um imenso animal, mas de um sistema que se auto regula e que articula o físico, o químico e o ecológico de forma tão inteligente e sutil que sempre produz e reproduz vida. Chamou-a de Gaia, nome grego para designar a Terra viva.

Nada é supérfluo na natureza. Com certo sentido de humor escreveu o Papa Francisco em sua encíclica “Sobre o Cuidado da Casa Comum” referindo-se a São Francisco. Este pedia aos frades “que no convento, se deixasse sempre, numa parte do horto, um lugar para as ervas silvestres”, porque do jeito delas também louvam o seu Criador.

Devemos cuidar destes trabalhadores anônimos que garantem a fertilidade dos solos e são responsáveis pela inimaginável diversidade dos seres, dos frutos diferentes, da variedade de flores, da diversidade das plantas e também da existência dos seres humanos, em seus diferentes modos de ser o que são. Com os bilhões de litros de agrotóxicos (só no Brasil se lançam ao solo cerca de 760 bilhões de litros) os ameaçamos e matamos. A humanidade é a primeira espécie na história da vida que já tem 3,8 bilhões de anos, a se tornar uma força geofísica letal. Ela é o meteoro rasante, capaz de criar as condições, por sua falta de cuidado e pela máquina de morte que criou, de exterminar a vida visível e a nossa civilização. Há quem diga que com isso foi inaugurada uma nova era geológica, o antropoceno. Mas esses micro-organismos ficam indiferentes. Um naturalista Jacob Monod aventa a ideia de que, pelo fracasso de nossa espécie, um outro ser, capaz de suportar o espírito, irá surgir, quem sabe mais amante da vida. Consideremos estes fatos: os pequeninos organismos vivos e visíveis como as formigas totalizam cerca de 10 mil trilhões e pesam o equivalente ao peso de toda população humana de 7,5 bilhões de pessoas. Os insetos, aos bilhões, são responsáveis pela polinização das flores que, posteriormente, darão frutos.

Quem poderia imaginar que uma simples ervinha silvestre de Madagascar fornecesse alcaloides que curam a maioria dos casos de leucemia infantil aguda? Ou que um obscuro fungo da Noruega fornecesse uma substância que permite realizar o transplante de órgãos? Mais surpreendente ainda: a partir da saliva de sanguessugas foi desenvolvido um solvente que evita a coagulação do sangue durante e após as cirurgias?

Como se depreende, todos os seres possuem primeiramente um valor em si mesmos, pelo simples fato de terem surgido ao longo dos milhões de anos de evolução e em seguida poderem ser generosamente úteis para o seu irmão ou irmã, o ser humano? As espécies ditas “daninhas” mas que, na realidade, são silvestres, enriquecem o solo, limpam as águas, polinizam a maioria das plantas com flores. Sem eles a nossa vida estaria sujeita a doenças e seria mais breve.  Essa legião de micro-organismos e minúsculos invertebrados, especialmente os vermes nematóides que constituem quatro quintos de todos os seres vivos da Terra, como nos afirmam os biólogos, não estão à toa e sem cumprir a sua função no processo cosmogênico. Nós precisamos deles para sobreviver. Eles não precisam de nós.

São Francisco pisava de mansinho sobre o solo com medo de matar algum bichinho. Nós andamos atropelando, sem consciência de que, escondidos no subsolo, estão membros da comunidade de vida.

 

Leonardo Boff é colunista do JB on line e escritor