Jornal O Estado do Triângulo - Sacramento
Edição nº 1783- 18 de junho de 2021

Guto deixa legado de sambista e congadeiro

Edição nº 1590 - 29 de Setembro de 2017

José Augusto Felício da Silva era o sexto filho de José Felício da Silva  e Maria de Castro da Silva, pais de 11 filhos, sendo um natimorto e mais três adotivos. Aprendeu o ofício de garçom com Carlos Pacheco, aos 15 anos, no Restaurante Jaguara. Trabalhou n'O Portal, com Paulo Ramos e  no Laticínios  Scala, mas há alguns anos estava desempregado, trabalhando como autônomo,  conforme revela a irmã Grace. 

Além da família, Guto tinha duas grandes paixões: Carnaval e Congada. E sempre desfilou na passarela, ora para o Treze de Maio, ora para Operários, Beija-Flor, Tradição Sacramentana. “Meu irmão foi um grande sambista, começou como passista, mas ficou bem conhecido como mestre sala”, conta o irmão Carlos. 

Nos últimos anos, Guto passou a se dedicar à Congada, num trabalho dedicado e constante, como membro da diretoria do Terno de Congada Guarda de São Benedito e Nossa Sra. do Rosário e ocupava o cargo de capitão-mor da Guarda.

 Guto deixa a companheira Maria Aparecida dos Santos Braga e um casal de filhos, Ana Cláudia e Carlos Augusto, o pai José Felício, irmãos, amigos e um grande legado de trabalho em prol da Congada e outros movimentos da cidade. 


Congadeiros se despedem de Guto

O corpo de Guto foi velado por familiares, amigos e conhecidos e recebeu homenagens dos congadeiros de Sacramento, Araxá e Franca. Romeu Sebastião Manuel, diretor do Terno de Moçambique  Raiz Africana,  de Araxá, conhecia bem o Guto e revela, que vai fazer falta não só para a entidade em Sacramento, mas em toda a região. “Vai fazer muita falta, pelo trabalho que fazia. A irmandade perdeu um grande irmão”, afirma.   

Já José Ronan dos Santos, presidente do Centro de Referência da Cultura Negra, de Araxá, destaca: “A gente participa das festas aqui e hoje vimos para essa tão repentina e triste despedida. Perdemos um baluarte da cultura negra não só de Sacramento, mas de toda a região”. 

E  Vicente Donizete da Silva, capitão do Raiz Africana, completa: “É uma perda para todos nós, porque ele era muito dinâmico, tinha prestígio” e finalizou fazendo a sua homenagem cantando: “Ó morte que tanto me chama/ ainda estou na flor da idade/ Oi, não me mata/ eu sou criança/oi, não me faz chorar saudade”.

Leonardo Martins, da Congada Três Colinas revela, que conhecia Guto de longa data. “Ele era muito participativo, encontrávamos não só nas festas aqui ou em Franca, mas em várias cidades da região, nos encontros de congada. E agora temos esse encontro de despedida.  É uma perda para a irmandade de São Benedito, mas Guto cumpriu sua missão”.

 Alcides da Silva dos Santos (Português), aposentado da Cemig, conheceu Guto sua família na vila de Jaguara e é padrinho de Carlo Pierre. “Vi esses meninos nascerem, pude compartilhar com eles a morte de Rubens no rio, aposentamos, a vila acabou, mas a amizade fica. Moro em Rifaina há poucos dias estive com ele lá... Um perda para todos,  principalmente,  para o  compadre José e os irmãos”, lamentou.

Coube a Delcides Tiago, (Cid), vice-presidente do Terno de Congada da Guarda de São Benedito e Nossa Sra. do Rosário, a mensagem de despedida da irmandade, momento em que relembrou fatos pessoais da longa amizade que os unia. 

“- Guto tinha os seus defeitos, quem não os tem, mas tinha muitas coisas boas também. Ele fez a sua parte, nos ensinou muito, era uma pessoa que não sabia dizer não. Estava sempre pronto a servir, ajudar, resolver as coisas. Vai deixar um grande vazio na família e na nossa cultura”, afirmou.

 Lembrando que tudo nos é emprestado por Deus, Cid disse que “Guto não morreu. Deus nos empresta as pessoas. Agora, nessa hora da devolução, cabe a nós termos fé, orar para que Guto tenha luz e paz..”, afirmou, puxando o canto: “É no campo de São Benedito/ que o sol e a lua 'alumeia'/ é no campo de São  Benedito, meu Deus/ que Nossa Senhora passeia”, repetido pela irmandade, acompanhado por uma triste batida no surdo.

 Antônio Francisco, ex-presidente da Guarda, também deixou sua mensagem, seguida pelo canto:  “São Benedito,  sua casa cheira/ Cheira cravo e rosa/ flor de laranjeira/Está caindo flor/ está caindo flor/no céu e aqui na terra, aí meu Deus/ está caindo flor”.

 Cid encerrou as homenagens convidado a todos a rezarem o Pai Nosso. 

Guto foi sepultado às 17h.  

 

Quando nascem os deuses

Estávamos todos na porta da Igreja para mais uma apresentação da Congada e do Moçambique. Mas a chuva naquele dia não cessava. A festa estava pronta. E ela lá. Não dava trégua. A chuva. Dentro do barracão as senhoras com toucas na cabeça já esperavam para servir o almoço às caravanas de cidades vizinhas que não chegariam, pois estava chovendo há dias. E a previsão era criteriosa! Pancadas de chuva no decorrer do dia. E nós lá. Molhados. 

Foi quando o Capitão Mor da Guarda de São Benedito, todo sem jeito chega ao portador da Medalha da Ordem de Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento, José do Carmo Martins: 

- É tio Carmo. A chuva vai atrapalhar a nossa festa! Em sua sabedoria ancestral, o ancião fala ao Capitão:

- É o contrário meu filho. A chuva! Ela veio nos abençoar!

- Mas como eu faço, Tio Carmo? Muita gente, muita criança. Muitos anciãos. Na chuva não dá!.

Foi quando o velho segura na mão do capitão Mor, e olha fundo nos seus olhos e diz:

- O senhor é o nosso Capitão Mor. Guie-nos. Lidere-nos. Faça a sua parte. Sua função de Capitão.

O Capitão Mor, naquele momento, faz soar o seu apito. Tão antigo quanto a história da cidade. Aquele apito veio do Desemboque nas mãos do Capitão Armandino, que herdara do Senhor Davi Martins. Aquele mesmo apito usado no momento fora dado de presente para o Capitão Mor, quando da morte de Armandino. Fora doado por sua viúva ao atual Capitão. Este sim, apoiado por aquela relíquia, evocou os batuques ancestrais dos reisados, tambores da crioula, maracatus, jongos; fazendo com que algo profundo acontecesse naquele dia na porta da igreja em meio a chuva fina. 

Nesse dia, lá na rua dos Inconfidentes, esses batuques saíram de dentro para fora, das vísceras, caminhando para a pele, tomando o coração de todos os presentes e depois os seus corpos. Tambores que percorreram os anos foram proibidos, e que cresceram sem que nós os percebêssemos dentro de nós. Tambores que nos ensinaram um caminho; um movimento simples, mas feito em comunidade, em comunhão. Eu tive a certeza naquele breve tocar de mãos do ancião e do Capitão Mor, que o que ele sabia e sentia sobre a vida, caminhava na contramão de tudo o que acreditava, pois insistia em ser urbano, individual, capitalista, como todos nós em sociedade moderna.

 A frase do ancião, 'A chuva! Ela veio nos abençoar!' passou a ser uma missão contra aquele individualismo, uma prova da humanidade; da ancestralidade que carregávamos em nós e insistíamos em esquecer. E na condição de mestre, de Capitão, esse poder lhe saiu da pele e contagiou os demais. E ali naquele meio, embaixo da chuva, podíamos celebrar a vida em meio à celebração cotidiana do nosso povo, nossos mitos, lendas e heróis. E nós não estávamos sós, a Rainha e sua corte naquele momento se juntou a todos, simbolizando a beleza e o misticismo desconhecido das nações índias e suas danças circulares. 

Acredito também que ali estavam nações mamelucas, cafuzas, mulatas, euro, tupi, mouras e nagôs, criando novas facetas e formas de entender o mundo.  A vida moderna, urbana desaprendeu-nos a saber das coisas que não podemos tocar. Ensinou-nos a termos medo da chuva fina. Mas ficamos lá. Uma multidão de foliões tocando, dançando, marimbando e louvando os nossos ancestrais.

Quando me vi em meio à multidão marimbando, foi que percebi que aquela chuva rala estava ali para coroar o nascimento de alguém que deixava de ser apenas um homem para se tornar de fato um líder, o Capitão Mor mostrava o seu poder, o qual fora empossado por uma divindade ancestral, estava fazendo história, deixando o seu legado, marcando o seu reinado. Sua capa verde, seu bastão vindo direto de árvores sagradas da floresta. Suas Gungas nos tornozelos. Seu Rosário cruzado no peito. Seu Lifá untado de Dendê e dormido aos pés de Yansâ. 

É Guto...você realmente será nosso Capitão Mor. Resquiescat in pace! 

 

 

 

* Julio Cesar Pereira é sociólogo e escritor.