O carioca Sergio Barcellos, 49, professor, mestre e doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RIO), desde 2009, com publicação de cerca de 30 títulos diversos, atualmente, dedica-se à pesquisa de estratégias metodológicas para viabilização de um arquivo de narrativas de vida no Brasil. Com esse objetivo, esteve em Sacramento, no início do mês de agosto, para concluir um trabalho de organização e acondicionamento de todo o acervo da escritora sacramentana, Carolina Maria de Jesus, que se encontra no Arquivo Público Municipal. O trabalho faz parte do projeto, Vida por Escrito, que deve prosseguir em novembro, na UERJ, com uma mesa de debates, onde estarão presentes dois convidados da terra natal de Carolina, a arquivista Eliana Garcia e o Prof. Carlos Alberto Cerchi. O projeto será concluído no início do próximo ano com a publicação do Guia e o relatório final. Veja a seguir, os pontos principais da entrevista que o pesquisador concedeu ao ET.
A descoberta de Carolina
“- Descobri Carolina de Jesus na faculdade e minha pesquisa para a tese do doutorado, 'Escritas do eu, refúgio do outro - identidade e alteridade na escrita diarística', consistiu na pesquisa de diários pessoais, diários íntimos e, para isso precisava de exemplos brasileiros. Já no final da tese, descobri o diário de Carolina, 'Quarto de Despejo', que eu desconhecia, e acredito, inúmeros outros brasileiros também o desconhecem. Eu já havia ouvido falar de Carolina, mas nunca havia lido nada, talvez até porque tenha ouvido ecos de preconceitos”, diz, lembrando sua orientadora.
“- Lembro-me de que, quando falei de Carolina com minha orientadora, ela me disse que quem havia escrito o diário fora o jornalista Audálio Dantas, que a descobrira. Não me importei mais, porque eu queria trabalhar com diários escritos pelos próprios autores e não uma coisa produzida por um jornalista. Ainda assim, contra as palavras da minha orientadora, li o 'Quarto de Despejo' e fiquei muito surpreso. Vi que havia alguma coisa muito interessante, o que me levou a incluir na tese um capítulo sobre a Carolina”.
Cinderela Negra
Aprofundando na pesquisa, Barcellos conhece o professor de História da USP, José Carlos Sebe Bom Meihy, que, nos anos 90, com a filha de Carolina, Vera Eunice, descobre toda a riqueza dos cadernos dela, que não eram só os diários. “O Prof. Meihy e Vera, através de um acordo com a Biblioteca Nacional e a Biblioteca do Congresso, em Washington (EUA), microfilmaram todo o material escrito por Carolina, culminando no lançamento do livro, 'Cinderela Negra', onde Meihy entrevista os filhos de Carolina, o jornalista Audálio Dantas e diversas pessoas que a conheceram, para entender a história por trás desse fenômeno Carolina”, informa.
De acordo com o Prof. Sergio Barcellos, a obra está esgotada, mas está trabalhando para sua reedição. “O professor Meihy me direcionou para conhecer, na Biblioteca Nacional, a obra microfilmada, mas ainda assim, percebi que precisava fazer alguma coisa para além do doutorado, com Carolina e para o meu próprio interesse, já que ela escreveu outras coisas além de diários”.
O projeto de Barcellos
O 'fazer alguma coisa além do doutorado' levou o professor e doutor Sergio Barcellos a elaborar o projeto, 'Vida por escrito', visando mapear a produção de Carolina, toda custodiada em instituições e até em arquivos particulares de pesquisadores. Concorrendo com cerca de dois mil projetos, o projeto foi um dos 40 contemplados com o Prêmio Funarte de Arte Negra.
“- Esse projeto nasceu justamente porque as pessoas só conhecem, de Carolina, os diários publicados, 'Quarto de Despejo e 'Casa de Alvenaria', e, mais recentemente, e com menos exposição, o 'Diário de Bitita'. Isso me incomodou muito, porque a imagem que se tem de Carolina, a partir dos dois primeiros diários publicados, é uma imagem de que ela foi moldada como estratégia de publicidade na época. Não que ela não os tenha escrito, mas a edição que foi feita desse material foi para atingir um público que, naquele momento, queria aquele tipo de literatura. Tanto é que a própria biografia dela demonstra que, quando ela quis impor o trabalho literário dela, aquilo que ela considerava como de valor literário, os poemas, os contos, peças de teatro, os romances, os provérbios, ela não teve editor para isso”, explica.
Projeto literário frustrado
Barcellos enxerga também, por conta do Golpe Militar de 64, todo um processo político de silenciamento, com a imposição de não dar mais voz ao subalterno, à periferia, ao favelado. “Havia também todo um uso oportunista da voz de Carolina, como queriam ouvir aquilo, o que ela tinha pra falar... Ninguém queria poemas nem romances, e ela tentou até o final de sua vida trazer este trabalho à tona e nunca conseguiu. E, até hoje, a gente continua ouvindo o perfil de Carolina: 'a mulher negra, semi-analfabeta, favelada...' Ela foi isso também, mas foi muito mais, ela tinha um projeto literário e esse projeto literário dela não ter sido considerado, me incomodou muito”, salienta.
Informando que é professor de especialização em literatura na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o Prof. Barcellos se surpreendeu ao falar a seus alunos sobre Carolina e descobrir que poucos alunos a conheciam. “Há quatro anos falo sobre Carolina a meus alunos, e só os mais velhos a conhecem. E a maioria não entende porque temos que estudar uma escritora que escreve o “português errado”. Mas alguns entendem que ela era um fenômeno na literatura e buscam conhecer. Digamos que, numa turma de 40 alunos, cinco se interessam em desenvolver algum trabalho sobre Carolina, o que para mim é uma grande vitória”, reconhece.
Acervo de Sacramento
Vitorioso, Barcellos saiu em busca de sua obra na cidade natal de Carolina Maria de Jesus. “Soubemos que, na década de 1990, a Vera Eunice havia doado os manuscritos para o Arquivo Público de Sacramento. Só que, ao se fazer a doação de um acervo, de um fundo, como é denominado, há a obrigação, por parte da instituição custodiadora, de elaborar uma classificação, um inventário, para facilitar o acesso àqueles documentos. Infelizmente, esse, que seria um procedimento correto, não foi feito em Sacramento. E até entendo as razões: não há estrutura, não há um arquivista, um profissional formado que sabe trabalhar com gestão de documentos, procedimentos de acesso, consulta, preservação de documentos raros, enfim, um profissional que não existe em Sacramento”, ressalva.
Tudo começou em novembro
Sergio Barcellos conheceu Sacramento em novembro de 2013 e teve contato com a ex-funcionária do Arquivo Público, Eliana Garcia, a quem elogiou muito pelo trabalho desenvolvido, sem ser uma arquivista profissional. E lamentou sua exoneração na semana em que esteve em Sacramento concluindo o projeto. Conheceu também a diretora do Arquivo, Alba Araújo e lembrou que ambas estavam se empenhando na melhoria da preservação do acervo de Carolina. “Eliana, inclusive, está se especializando, pesquisando como gerir um arquivo, buscando se informar, aprender, o que é excelente”, elogiou.
Barcellos chama a atenção para o perfil do funcionário que cuida de um Arquivo Público. “Mesmo não sendo um profissional especializado para gerir um arquivo, é fundamental que ele seja fixo na função, que seja efetivo, para que não sofra influências de governos a cada eleição. Entendo que é um setor menor, na administração de Sacramento, porém, embora eu não tenha conhecido todo o acervo, digo, com certeza, que ali está um acervo muito importante, uma documentação muito valiosa”, destaca.
Para o professor o mais importante é que o Arquivo cumpra sua função de guardar os documentos com todos os critérios, normas e cuidados para sua preservação e de facilitar o trabalho das pessoas interessadas em realizar pesquisas históricas da cidade e região. “Se não houver um esforço para que alguém, ainda que não seja especialista, pelo menos que seja mais capacitado para gerir os documentos; e que permaneça no setor cuidando para que aquele acervo não fique perdido, mas sirva de consulta permanente. Sem ele não haverá a difusão da história da região, da cidade, que tem uma contribuição muito grande para dar”, alerta.
A organização dos documentos carolinianos
A primeira visita de Barcellos a Sacramento, em novembro último, visava única e exclusivamente buscar informações da obra de Carolina: copiar, descrever os cadernos, inclusive no seu aspecto físico, o roteiro de como chegar a Sacramento, como solicitar o material para pesquisa, enfim, tudo o que um pesquisador precisa saber para iniciar um trabalho e que, teoricamente, estaria disponibilizado no Arquivo.
Para sua surpresa, não encontrou nada disso. Pelo contrário, não havia um inventário do acervo. E o pior, estava mal acondicionado, enrolado em plástico e colocado em prateleiras dentro de salas com janelas abertas e não climatizadas, sujeitas a todo tipo de fungos e bactérias.
Diante do que presenciou, ele mesmo decidiu usar parte do dinheiro do prêmio para realizar esse serviço. “Por se tratar de um Arquivo Público, cheguei aqui pensando que todo o material estivesse inventariado, mas não estava. Então, eu, embora não seja formado em arquivologia, tentei me capacitar e empregar os procedimentos corretos para organizar esse acervo da Carolina. E hoje, tenho a felicidade de poder dizer que, com a ajuda da Eliana, pudemos fazer esse inventário. Está tudo separado, catalogado”, revela com alegria.
A obra de Carolina
Para montar esse inventário, Barcellos disse que se espelhou no que foi feito na Biblioteca Nacional. “Isso, porque o material que está aqui em Sacramento é quase que o mesmo que foi microfilmado na Biblioteca Nacional. Então, pesquisei a Biblioteca e trouxe a organização de lá para os manuscritos aqui”.
De acordo com suas pesquisas, a maior parte do acervo da escritora Carolina Maria de Jesus está em Sacramento, agora, organizado com o mesmo critério adotado pela Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. “Lá, além do material que se encontra em Sacramento, estão 14 cadernos dos originais da obra 'Quarto de Despejo', doados por Audálio Dantas, em 2011. Além destes, há dois cadernos no Instituto Moreira Salles, um de poema e outro, um texto autobiográfico que, na verdade, é uma das várias versões de 'Diário de Bitita'. Eles foram doados para o Instituto, mas não sei ainda a proveniência. No Museu AfroBrasil, em São Paulo, existe também um caderno, um diário, que foi doado pelo Audálio Dantas e, na Biblioteca da USP, também há dois cadernos. E tudo isso vai constar do Guia”, explica.
Proteção dos documentos
Para Sergio, a importância da organização visa a sua preservação. “Os cadernos de Carolina são muito antigos, alguns encontrados no lixo. Esse material foi todo higienizado na época da microfilmagem, só que, qualquer documento raro, precisa ser acondicionado em embalagens próprias, que não proliferem fungos e bactérias, devendo ser guardados em ambientes climatizados. E, a primeira coisa que vi aqui é que há muitos cadernos mutilados”, revela, sem culpar ninguém.
“- Não é momento de apontar o dedo e acusar de quem seja a culpa de muitos desses cadernos terem páginas rasgadas, manchadas com fungos, mas este acervo está numa sala sem controle de umidade. Por exemplo, quando estive aqui em novembro, esses documentos estavam em sacos plásticos, sem papel de ph neutro”, lembra.
Segundo o professor, há todo um conjunto de fatores que têm que ser seguidos para a proteção dos documentos, do contrário, com o tempo as folhas dos cadernos vão ressecar e esfarelar. “Esses fungos e bactérias vão contaminando outros cadernos e vão causando um grande dano a esses documentos. Noutras palavras, esses documentos teriam um período de vida muito curto, porque estavam acondicionados de forma inapropriada, em sacos plásticos que servem como uma espécie de estufa para as bactérias e fungos. O correto seria usar caixas de material inerte ou alcalino ou, no caso de ambiente climatizado, caixas de plástico corrugado”, esclareceu.